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Serafina

Fernanda Montenegro ataca 'vício' em meia-entrada e estatização da cultura

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Ela já encarnou personagens de Sófocles e Molière, Pirandello e Beckett, Jorge Andrade e Nelson Rodrigues. Mas, em seus quase 65 anos de carreira, em que esteve na pele de cerca de 500 tipos, nos palcos, no cinema e na TV, há uma personagem que se destaca, interpretada diariamente e tida em todo o país como a primeira dama do teatro brasileiro: Fernanda Montenegro.

Foi esse o pseudônimo criado pela adolescente Arlete Pinheiro Esteves da Silva, em 1949, para apresentar um programa de adaptações literárias na Rádio do Ministério da Educação.

"Escolhi um nome que achei literário e maluco. E pegou", diz a atriz, remetendo à célebre frase com que o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891) descreveu a multiplicidade de vozes que o artista traz em si: "Eu é um outro".

Desde então, uma é outra, e outra é, no fundo, uma. "O esteio da dona Montenegro é a dona Arlete. Uma é para uso externo, outra é para uso interno. Uma tem uma fantasia em torno dela, outra tem a realidade palpável do dia a dia", teoriza, enquanto retoca a maquiagem para as fotos que ilustram estas páginas.

Mas, aos 83 anos, ainda consegue se enxergar como Arlete?

Antes de responder, uma mira a outra no espelho, em silêncio. Sem desviar os olhos do reflexo, diz: "Consigo. Mas consigo lá dentro. Isso aqui, agora, por exemplo, não é a Arlete. É a Fernanda. Embora o cavalo seja da dona Arlete, ou seja, o corpo seja o dela, tudo isso o que está armado sobre ele é da dona Fernanda", explica.

E foi como Fernanda Montenegro que ela causou barulho recentemente ao beijar na boca a colega Camila Amado, 77, durante o prêmio da Associação dos Produtores de Teatro do Rio (APTR). O beijo, interpretado como um protesto contra a permanência do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, transformou a atriz em nova musa da luta contra a homofobia.

"Não foi bem um proteeeeesto", diz. "Dois atores haviam dado um selinho em repúdio ao insulto que é esse homem. A Camila entrou no palco e disse: 'Eu também gostaria que alguém me beijasse na boca'. E eu disse: 'Pois não, vamos nós'. Fui lá e a beijei simplesmente", narra. "Se foi tido como um protesto, tudo bem."

Agora, Fernanda integra uma campanha contra o preconceito cujo slogan é: "O próximo pode ser você".

Ela mesma já foi alvo. "Nos anos 1950, atriz era prostituta, e ator era gigolô ou veado. Não tinha salvação", lembra. Ela é do tempo em que toda atriz e toda prostituta tinham de obter na delegacia uma carteirinha para trabalhar na área de diversão. "Era um documento da segurança pública para a marginália. Foi suspenso após campanha da atriz Dulcina de Moraes [1908-1996]."

Criada num sítio na região de Jacarepaguá, zona oeste do Rio, Fernanda teve uma infância primitiva, cercada de bichos e dos parentes –muitos deles eram pastores na Sardenha, Itália.

A memória deve ajudá-la no remake de "Saramandaia", em que interpretará uma personagem que não existia na trama original e que contracena com animais. "Sempre conversei com os bichos, não vai ser novidade", brinca. "Perdi um cachorrinho que era a minha conversa noturna e tenho um casal de passarinhos com quem fico de papo. Mulher fala muito, né? Está sempre conversando com ela mesma e com as coisas. E bichos são ótimos para isso."

PRIMEIRO ATO

Além do trabalho na TV, neste ano Fernanda ainda será, pela primeira vez na vida, diretora de uma peça. Também retomará as viagens com a peça "Viver sem Tempos Mortos", monólogo em que interpreta, há quatro anos, a escritora Simone de Beauvoir (1908-1986).

O desafio de dirigir pela primeira vez teve como incentivo extra a autoria do texto. "Nelson Rodrigues, por Ele Mesmo - Um Depoimento" baseia-se no livro em que a filha do dramaturgo, Sônia Rodrigues, reúne crônicas nunca publicadas.

"Fui muito ligada a Nelson. A meu pedido ele fez três peças: 'O Beijo no Asfalto', 'Toda Nudez Será Castigada' e 'A Serpente'. Fiz 'A Falecida' no cinema e duas de suas novelas. Achei que saberia levar aquilo para os palcos", conta.

Ninguém diria que a moça que estreou no teatro em 1950, com a peça "Alegres Canções nas Montanhas", chegaria tão longe. O espetáculo foi "um fiasco", como costuma dizer, e ficou só dez dias em cartaz –mas foi ali que ela conheceu Fernando Torres, com quem se casou três anos depois.

No ano seguinte, estreou na TV Tupi. "Era um tempo em que ninguém via TV porque pouquíssima gente tinha o aparelho em casa. De modo que eu fazia programas para ninguém", ri.

"Com o tempo, a TV passou a imprimir a visão de que o ator vai ali para ganhar dinheiro, e não para fazer arte. Que ali é um pulo para o sucesso", avalia. "Hoje, 20% dos atores estão na TV com garantia de emprego por um bom tempo. Os outros 80% estão no teatro a pão e laranja. O teatro é um artesanato lento, e cada dia é uma batalha para sobreviver artística e economicamente."

Fernanda foi a atriz certa nas horas e nos lugares certos e se destacou em meio a uma geração de grandes talentos: Ítalo Rossi, Bibi Ferreira, Raul Cortez, Paulo Autran e Sérgio Britto. Após a morte de Cacilda Becker, em 1969, ela assumiu, aos 40 anos, o título informal de maior atriz do Brasil.

O ápice, no entanto, foi a indicação ao Oscar de melhor atriz, inédita para uma brasileira, pela atuação em "Central do Brasil" (1998), de Walter Salles.

"Não haveria 'Central do Brasil' sem ela", diz o cineasta. "O filme parte de uma ideia original criada para Fernanda, que imprimiu um nível de excelência que irradiou para a equipe inteira."

Veremos Walter e Fernanda juntos novamente? "Estamos pensando em um novo filme juntos. É algo embrionário, mas que pretendo realizar," diz a atriz. "Colaborar novamente com Fernanda seria um sonho", derrete-se o diretor.

SEGUNDO ATO

Arlete conseguiu preservar sua intimidade e manter Fernanda Montenegro na linha de frente. A atriz se tornou empresária de si mesma.

"Meus pais eram independentes: autodidatas, franco-atiradores, aventureiros", diz a atriz Fernanda Torres, 47, colunista da Folha e filha do casal, assim como o cenógrafo e diretor Claudio Torres.

Mãe explica filha: "No meu tempo, do espetáculo mais experimental ao mais careta, a gente ia ao banco, pegava um empréstimo e se endividava. Só que o público pagava o ingresso. E a gente saldava a dívida e sobrevivia".

Fernandona ataca a estatização e o "pouco pão na mesa" da cultura. "O Estado é o grande pai –no caso, a grande mãe–, e somos prisioneiros desse sistema", diz. "Só se faz tanto monólogo hoje porque é o que dá para produzir."

Para a atriz, o bom exemplo desse "sistema" é o modelo de prestação de contas. "Adoraria ver os 39 ministérios do Brasil justificando despesas como nós da cultura fazemos para o Ministério da Cultura. Isso é dinheiro público."

Fernanda foi convidada duas vezes a assumir esse Ministério da Cultura: uma no governo Sarney (1985-1990) outra no Itamar Franco (1992-1994).

"Quando você se entrega a uma profissão, passa a ter uma deformação profissional, entre aspas, que me levou a declinar desses dois convites. Vê a que ponto se chega?" E cai na gargalhada, sem arrependimentos.

Para ela, outro problema da cultura atualmente é o "vício" em ingresso barato e em meia-entrada. "Você não pode fazer um espetáculo em que, se aparecer 100% de público com carteirinha, você obtém metade da bilheteria. Se você levar essas carteirinhas no supermercado, o açúcar não sai pela metade do preço, não é verdade?"

TERCEIRO ATO

Vaidosa, Fernanda diz manter a silhueta esguia por sorte. "Não tenho propensão para engordar. Como bem, mas não gosto de gordura nem de doce."

Há 40 anos, fez sua primeira e única cirurgia plástica. "Tirei bolsas debaixo dos olhos. Elas voltaram, maravilhosas. Percebi que era inútil lutar. Inútil paisagem, como cantou Tom Jobim."

O passar dos anos e a fragilidade do corpo parecem não a incomodar. Difícil é testemunhar a morte dos amigos.

Nos últimos dez anos, Fernanda convive com esses vazios: Sérgio Britto, Gianni Ratto, Gianfrancesco Guarnieri, Chico Anysio, Millôr Fernandes, Ítalo Rossi e Fernando Torres, que morreu em 2008, após 60 anos de casamento. "Os primeiros anos sem Fernando quase me derrubaram", desabafa.

Sobre a perda de colegas, confessou ao ex-genro, Gerald Thomas, chorar diariamente. "Na hora de dormir, olho para o teto e choro. Na hora de acordar, olho para o teto e choro de novo. E, se você quer saber, às vezes, no meio da madrugada, eu choro também."

A declaração fez o dramaturgo produzir um texto intitulado "Eu Choro". "Fernanda tem aqueles olhões para fora e se emociona facilmente. Dá para ver ali toda a angústia da humanidade."

À Serafina, confessou. "É horrível. São pessoas que vão embora e não têm peça de reposição. Com cada um se viveu uma memória. E agora só eu estou com aquela memória em comum... Por enquanto."

Fernanda acredita que já viveu os melhores anos da vida, portanto, a preparação para a morte é inevitável. "Mas vamos carregando o processo vital até onde der."

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