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Serafina

Aos 91 anos, compositor do samba "Cada Macaco no seu Galho" renega a bossa nova

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"A bossa nova é foda", e não é Caetano Veloso quem diz. Um baiano de 91 anos vem cantando essa bola há décadas –mas na direção oposta à elogiosa canção do conterrâneo mais famoso. "Menina, vou lhe dizer: é um negócio horrível a bossa nova, destruindo o sentimento do passado. Ai, ai... Que me perdoe quem gosta, mas é a dura realidade."

Em duas horas de conversa com Riachão, sobram certezas (o samba, esse sim, "é música natural") e falta cachaça (mencionada 19 vezes, embora há seis anos ele evite a branquinha e vá de cerveja preta, por motivos de saúde). A questão é que a tristeza não é senhora coisíssima alguma para esse sambista velha guarda.

São dele clássicos como "Vá Morar Com o Diabo" (que você conhece na voz de Cássia Eller) e "Cada Macaco no seu Galho" –esta foi reproduzida como "homenagem" aos militares por Caetano e Gil, logo após voltarem do exílio, em 1972: "O meu galho é na Bahia, xô, xuá, o seu é em outro lugar..."

Não que tudo seja fácil para Clementino Rodrigues, nascido 91 dias antes da Semana de Arte Moderna de 1922, em Salvador (Riachão, sinônimo de menino briguento na infância, foi nome adotado "para a vida de malandragem"). Nos primeiros dias de 2008, sua mulher, Dalva, dois filhos, genro e cunhada morreram num acidente de carro, no interior do Rio.

Outra perda forte: a maioria das 500 músicas que calcula ter composto nos anos 1930 e 1940 se foi "num incêndio pequenino lá na rádio" (não sabe precisar a data, só que "foi no antigo"). Os males, contudo, Riachão espanta cantando. Essa outra certeza na vida lhe fará trocar, por alguns dias de agosto, a casa onde vive "desde sempre" em Salvador, plantando "aipim, quiabo, jiló, cana e abacate", por São Paulo.

Num estúdio na Vila Madalena, se esforçará para lembrar o próprio repertório –como tudo com ele é na base do improviso, inclusive "as canções que Jesus manda", quase nada do que o fogo levou ficou na memória. Compilará a seleção num disco, feito raro em décadas de carreira: só gravou quatro, o último deles ("Humanenochum") há 13 anos.

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O QUE É QUE O BAIANO TEM

Em passagem pela cidade, há dois meses, ficou hospedado num "hostel" (o hóspede conquistou a dona, que lhe fazia bolo de banana). Lá pertinho do estúdio de gravação, onde foi feito um "mise-en-scène" para sua chegada.

Riachão participou de um sarau, com convidados espalhados por mesas de um bar "fake" (com direito a cachaças bem realistas). A ideia era que, no calor do momento, ele fosse pescando da memória músicas do passado.

Mordeu a isca. Até agora, já foram registradas 59 composições que, não fosse o projeto que não deixa seu samba morrer, perigavam cair no esquecimento. "Na hora em que a melodia chega, o malandro joga no ar", ele resume. O autor recorda três delas (inéditas para todos à sua volta) durante o papo com a Serafina.

Ele é praticamente um sr. Swing Simpatia com boina, paletó e sapato brancos, meia vermelha e cachecol dessas duas cores, anéis em quase todos os dedos e um relógio do tamanho do pulso. E qualquer coisa dá samba. "Riachão tem as composições baseadas nos acontecimentos da vida da humanidade", diz o próprio.

A morte do amigo alfaiate, por um colega, com "faquinha de sapateiro", embriagado de cachaça (claro!). O dia em que, a caminho de tomar "umas cachacinhas" (...) com camaradas, avistou uma baleia na caçamba de um caminhão, cena surreal devidamente registrada nos versos: "Eu vi o umbigão da baleia/ Eu vi o rabão da baleia/ Só não vi uma coisa da baleia".

Riachão tinha 16 anos quando estreou como compositor. Achou no chão uma folha de revista rasgada e leu: "Se o Rio não escrever, a Bahia não canta". E encucou: "A Bahia quem é? A Bahia sou eu. Fiquei com aquilo no juízo". Para mostrar o que é que o baiano tem, escreveu a primeira obra na hora e várias outras nos anos seguintes.

A composição mais conhecida, "Vá Morar com o Diabo", contudo, ele rejeita. Avisa que repetirá história já contada para o "amigo João Soares" (refere-se a Jô Soares) e vai: "Essa aí não tem nada a ver comigo. Não tem sentimento com as mulheres. Só nasceu por causa de um amigo na Bahia, que contou a história dele com uma nega que não queria lavar, cozinhar, passar roupa, varrer o barracão".

Riachão, sempre sorrindo, só bambeia ao falar de um assunto. "Penso na morte porque ela está aí para a gente. Mas peço a Deus que eu não morra. É tão triste... Nunca mais a gente vai se ver. Ver a gata aqui, o malandro ali."

Mas logo volta a si e canta uma de suas letras. E seu retrato remete a outra canção, essa de Vinicius de Moraes: "É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe..." Desculpa, meu caro Riachão. É que, às vezes, a bossa nova é foda.

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