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Serafina

Escritor troca o mundo corporativo pela literatura

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"Dizem que o sonho de adolescente é aquele que a gente tem que levar mais a sério, né? Sempre ouvi falar disso. Então, por que não?"

Flavio Cafiero explica assim por que largou há seis anos o mundo corporativo, onde trabalhou por 15 anos e em que chegou a ocupar um cargo executivo, para se aventurar na literatura. Aos 41, se prepara para lançar seu primeiro romance em outubro. Ele é uma das novas apostas da editora Cosac Naify e, em julho, foi um dos vencedores do Prêmio Off Flip de Literatura.

Escrito de forma fragmentada, "O Frio Aqui Fora" conta uma história de inspiração autobiográfica. O personagem principal também deixa a empresa onde trabalha para seguir o sonho de ser escritor. Isso acontece em meio a uma separação e à descoberta de que vai ser pai. "Algumas situações relacionadas à minha saída estão lá, mas misturei isso com a vida do personagem, que não é a minha."

Caio Palazzo
Após 15 anos no mundo corporativo, Flavio Cafiero resolveu virar escritor; seu primeiro romance, "O Frio Aqui Fora", será lançado em outubro
Após 15 anos no mundo corporativo, Flavio Cafiero virou escritor; seu primeiro livro, "O Frio Aqui Fora", será lançado em outubro

Carioca que mora em São Paulo há duas décadas, Flavio conta que a decisão de sair da multimarcas C&A, onde entrou como trainee e chegou a gerente de produto, foi uma via de mão dupla: a empresa sinalizou que estava mudando e ele quis sair.

"Uma psicóloga plantou uma pulga atrás da minha orelha ao dizer, após um teste, que eu tinha o tipo de personalidade mais difícil de encontrar no ambiente corporativo, que eu devia negociar todos os dias e sofrer", diz.

Abandonou a ideia de seguir o caminho natural e recomeçar em outra empresa e foi se inscrever em um curso de escrita criativa, com a escritora e crítica literária Noemi Jaffe. "Eu sei reconhecer um escritor. Com ele, desde o primeiro texto, eu já sabia. A turma toda sentiu que alguma coisa ia sair dali", diz Noemi.

"Ele tinha qualidade técnica e um jeito muito pessoal de falar sobre as coisas, meio melancólico e perturbador, bem filosófico, mas ao mesmo tempo simples."

Noemi conta que o texto de Flavio ficou tão autônomo que sugeriu que ele deixasse as aulas depois de alguns módulos. "Ela me expulsou", ele conta.

Flavio se jogou na nova vida: escreveu um livro de contos sobre observações feitas no metrô ("Esse não merece publicação", diz), estudou roteiro e voltou-se também para a dramaturgia e a atuação. "Atuei em uma produção amadora. Minha mãe ficou superemocionada e entendeu minhas escolhas."

No fim do ano passado, Noemi voltou à cena. De mestra, adotou a identidade de madrinha e pediu permissão para mostrar o original do que seria o primeiro livro a alguém. Flavio não sabia, mas o "alguém" era Marta Garcia, editora da Cosac Naify que buscava novos autores brasileiros.

Hoje, quando questionado sobre qual a sua profissão, ele não hesita em responder: "Escritor". Mas talvez não tenha abandonado por completo algumas características do mundo corporativo, como o hábito de ser muito produtivo –escreve roteiros para cinema e TV, peças de teatro e publicitárias– e o de respeitar prazos com rigor.

"Não entendo quando as pessoas dizem que estão sem inspiração ou que não têm intimidade com o personagem. Para mim, tem que sentar e escrever."

*

Leia trecho de "O Frio Aqui Fora", primeiro livro de Flavio Cafiero, que será lançado pela editora Cosac Naify em outubro:

"E foi na cama que nasceu o apelido, numa dessas noites antes de o Pulga existir. Encerradas as trocas literárias e a sessão de ciências para iniciantes, ele brincava de esconder as mãos na manga longa, tatibitava como um bebezão, fazendo manha, daquele jeito íntimo e constrangedor com que casais com certo tempo de convivência se divertem. E lançava protestos à namorada, fingindo revolta contra o uniforme de dormir, como até hoje chama os pijamas. Por que forçar um homem a se vestir daquele jeito, me diga? E aposentar o short de náilon furado nos fundilhos? E a camiseta que a mãe trouxe de uma viagem, uma lembrança de não sei onde, lembrei de você, aquelas coisas agora tão formatadas ao corpo? E desfrutava das risadas arrancadas com números toscos de palhaço, quando ela chamou o namorado pelo nome do anão, aquele mudo e orelhudo dos contos de fada, sempre tropeçando nas mangas e atrapalhando a fila. E aglutinou o Dunga do anão no Guga do namorado, foi assim, meio ao acaso, e deu em Gunga, apelido exclusivo e intransferível. Gunga, Gunga, Gunga. Vem, Gunga. Cadê você que não chega, Gunga? E as poucas vezes que ouviu seu Gunga reproduzido na boca de outra censurou imediatamente, não: exclusividade dela, só ela poderia chamá-lo assim.

Foi quando parou para pensar nos nomes pela primeira vez, e percebeu que aquele Gunga o modificava de alguma forma. A senha, quando pronunciada, tinha o poder de libertá-lo de não sabe bem o quê, mas suspeita que seja do Palito, o aluno que não sabia jogar futebol nas aulas preguiçosas de educação física, ou do Cebola, com um redemoinho rebelde no cocuruto, o menino calado, tímido, ensimesmado, ou do Tavinho, com o nariz de batata apertado diariamente pela mão fedida a carne crua da cozinheira, ou mesmo do Gustavão, adolescente sem pai ou padrasto, buscando elogios onde eram raros, fosse nos professores da escola, onde nunca foi estudante brilhante, fosse nos colegas, que o chamavam de perna de pau, fosse onde fosse. Quem sabe estivesse se livrando. mesmo era do Guga, meu Guguinha, o filho que recebia broncas e censuras da mãe, amado e repreendido por quem tentava também ser pai, uma meia mãe desajeitada e com medo. Os elogios completos nunca vinham, dizem que elogio demais estraga, e os que escapavam da boca da mãe não encontravam ressonância, pareciam burocráticos, e faziam do Guga apenas um esforço materno à sombra de uma lacuna paterna, uma desmedida de compensações que fazia tudo oscilar entre a verdade e a mentira. A mãe, tentando deixá-lo livre e tentando não mimá-lo, fazia falta. Mas a mãe, cobrando tarefas com o chapéu de professora, rigorosa e atenta, era excesso, era demais para suportar. Como deve ser difícil ser mãe e pai ao mesmo tempo. E será que sou mesmo bonito? Esforçado o suficiente? Inteligente o bastante? É assim mesmo? Será que tudo em que era bom seria fruto do acaso e tudo de ruim obra de sua incompetência mais arraigada? E foi desse Guga emaranhado que nasceu o Luna, o Lunão, o gerente que chegou a nível dois, na onda das oportunidades, o das boas avaliações, competente, pontual, ágil, caprichoso, opinativo, e que nunca alcançaria o brilho fosco do nível três. "

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