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Serafina

Claudia Andujar revela ensaio inédito feito durante invasão de terra indígena nos anos 80

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De repente, como por geração espontânea, milhares de garimpeiros se espalharam por todo lado. "Foi o maior perigo que os ianomâmis correram, foram muitas mortes. Eram 20 mil garimpeiros. Não havia limites, estavam por todo lado", conta Claudia Andujar, 83, autora das fotos que ilustram esta reportagem, parte de uma série inédita, realizada em Roraima, nos anos 1980.

O ensaio mostra as placas comerciais da chamada "rua do Ouro", em Boa Vista, e a destruição provocada pela mineração. As fotos estarão expostas pela primeira vez, em 2015, na galeria que será dedicada ao trabalho de Claudia, no Instituto Inhotim (Brumadinho, MG).

Claudia Andujar viveu muito tempo buscando a sua própria identidade. Nascida na Suíça, em 1931, filha de uma protestante de língua francesa e de um húngaro de família judaica, foi criada na cidade de Oradea, na Transilvânia, que, durante sua infância, mudou de mãos ora pertencendo à Romênia, ora à Hungria.

Com os pais separados, foi morar em um convento católico enquanto estudava numa escola judaica. Em 1944, o pai e todos os judeus de sua cidade foram deportados e mortos em um campo de concentração. Entre eles estava o adolescente Gyuri, seu primeiro namorado. Ela sobreviveu ao se refugiar na casa da mãe.

Poucos meses depois, um policial romeno com trânsito entre os nazistas alertou para que fugissem para a Suíça: os russos estavam chegando. Elas conseguiram, depois de uma odisseia com todos os elementos das tragédias dos refugiados de guerra.

Claudia viveu poucos anos com a família protestante da mãe até que um irmão do pai, que vivia em Nova York, a convidou para morar nos EUA. Ali, passou o final da adolescência e o início da vida adulta, mas não era feliz e nem se sentia em casa.

O sobrenome de nascimento é Haas. Andujar, ela adotou do primeiro marido, espanhol. O casamento durou pouco e, em 1955, resolveu visitar a mãe, que tinha vindo morar em São Paulo com o senhor Tiberius, o policial romeno, que chegou a ser preso pelos ingleses, antes de fugir para o Brasil.

Claudia sentiu aqui "uma afinidade muito maior do que com os americanos". Ficou. Para viver, dava aulas de inglês. Alugou um apartamento e, sempre que possível, viajava.

"Quando fui à Bolívia, tive os primeiros contatos com indígenas. Ao voltar para São Paulo, conheci o Darcy Ribeiro (1922-1997), que me sugeriu visitar índios brasileiros. Era 1958. Foi então que percorri várias tribos. E, nessas viagens, comecei a fotografar", conta. "Para mim, era a maneira de me comunicar com as pessoas, porque eu não falava português." Começava assim sua carreira.

REALIDADE INDÍGENA

Logo de início, sentiu-se segura para apresentar as fotos para as principais revistas brasileiras: "Tentei mostrar o meu trabalho para a 'Cruzeiro' e a 'Manchete', mas eles não quiseram nada com uma mulher fotógrafa. Decidi levá-las para Nova York e lá tive uma recepção muito boa".

Vendeu uma foto para o Museu de Arte Moderna (MoMA), cujo curador era o famoso crítico Edward Steichen, expôs no museu da Kodak e fez contatos que resultaram em publicações em revistas consagradas. "O primeiro ensaio que publiquei na vida era sobre os índios carajás, na 'Life'."

Claudia Andujar
Vista aérea de área destruída pelo garimpo, presente no ensaio de Claudia Andujar
Vista aérea de área destruída pelo garimpo, presente no ensaio de Claudia Andujar

A boa repercussão de suas reportagens fotográficas no exterior a levou a ser convidada para participar de uma nova revista, que estava sendo preparada em São Paulo, em 1965: "Realidade" chegou às bancas em 1966, catapultando o prestígio da então jovem Editora Abril. A publicação atraiu grandes fotógrafos, vários deles estrangeiros radicados no país, como Claudia e seu segundo marido, o americano George Love, que a conheceu em uma de suas viagens aos EUA e a seguiu para o lado de baixo do Equador.

"Em 1970, a 'Realidade' decidiu fazer uma edição especial sobre a Amazônia. Disseram para eu não fotografar índios. Acho que tinha a ver com a ditadura. Mas lá encontrei os ianomâmis e, no fim, quando voltei da Amazônia, eles ficaram encantados com as fotos. Me deram várias páginas e a capa da revista."

Aquela edição mudou a cabeça de Claudia. Ela decidiu largar o fotojornalismo para "fazer um trabalho profundo, meu mesmo", sobre a cultura ianomâmi. Foi morar com os índios em 1971. Graças a uma bolsa da fundação John Simon Guggenheim, o mergulho durou sete anos. Tanto tempo que se separou de Love. "Depois não tive mais maridos, só namoros", ri.

A temporada foi interrompida em 1978, quando agentes da ditadura acusaram de espionagem a fotógrafa estrangeira atuando em área de fronteira. Naqueles sete anos, conheceu o céu e o inferno dos ianomâmis. Fotografou os dois. Criou uma linguagem fotográfica para exprimir o simbolismo do xamanismo indígena, as visões que os índios têm em seus rituais.

Muitas dessas fotos estão na série "Sonhos", superposições de fotogramas que criam imagens de tom surreal. Ela apresentará o trabalho na Flip, em Paraty, onde participará de encontro com o líder ianomâmi Davi Kopenawa, no dia 1o/8.

Quando foi expulsa da tribo pelos militares, voltou desesperada ao mundo branco. Havia uma grande urgência: em algumas áreas, metade da população ianomâmi já havia morrido.

Em São Paulo, antropólogos da Comissão Pró-Índio, como Manuela Carneiro da Cunha e Beto Ricardo, a apoiaram a criar a Comissão Pró-Ianomâmi, com o missionário católico Carlo Zacquini e o antropólogo francês Bruce Albert. Em 13 anos, a entidade alcançou o reconhecimento da terra indígena de 192 mil km2, entre Roraima e Amazonas.

MARCADOS PARA VIVER

Ela voltou à área no início dos anos 1980. Um dos trabalhos mais intensos era acompanhar equipes da Escola Paulista de Medicina em campanhas de vacinação. Os médicos usavam um sistema para identificação dos pacientes, com fotos e números (como um RG). Ela fotografou milhares de índios para essas fichas médicas.

Assim, nasceu a série "Marcados", apresentada ao público pela primeira vez na 27a Bienal de SP (2006). Ao refletir sobre o trabalho, Claudia notou um paralelo entre seus parentes na Hungria, que os nazistas "marcavam para morrer", e os índios retratados em suas fotos, "marcados para viver". É seu ensaio mais exibido em todo o mundo.

"Marcados" também estará em destaque na galeria dedicada ao trabalho de Claudia, que será inaugurada em 2015, em Inhotim. Em um prédio cercado de mata nativa, com áreas escuras ou iluminadas por luz natural, como numa casa indígena, serão apresentadas as 500 obras selecionadas por ela junto com o diretor de arte de Inhotim, Rodrigo Moura —todas de seu trabalho com índios.

"Nós construímos juntos o desenho do acervo e os conjuntos que o compõem. Não tenho dúvida de que a maior contribuição dela como artista é o trabalho ianomâmi", diz Rodrigo.

Em junho, quando a entrevistei em sua casa próxima à avenida Paulista, querendo saber sobre sua identidade, perguntei: "Com toda sua história, como se sente: judia, húngara, suíça, protestante, norte-americana, brasileira...?"

"Ianomâmi", me disse. "Sinto que sou parte da família."

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