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Serafina

"Não vi vida além do palco. Mundo pra mim era um circo", diz Marília Pêra

Felipe Hellmeister
Marília Pêra
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Este texto foi publicado originalmente na Serafina de março de 2009

Marília Pêra está falando cada vez menos e mais baixo. Aos 66 anos de idade, 62 de carreira, 48 peças no currículo e reconhecida pela versatilidade de uma voz que lhe permite transitar com impressionante desenvoltura por repertórios tão distintos quanto os de Maria Callas, Carmen Miranda e Dalva de Oliveira, a atriz agora deu para desafinar. Como se fosse uma caloura ensandecida, ela também faz pouco caso do ritmo, ignora o tom e ainda obriga o pianista que a acompanha a um malabarismo na tentativa de afastar sua performance do constrangimento.

O que tem obrigado Marília Pêra a cometer tantos desvarios vocais é o espetáculo "Gloriosa", do dramaturgo inglês Peter Quilter, em cartaz no teatro Fashion Mall, no Rio, com chegada prevista em São Paulo ainda no primeiro semestre deste ano. Isso se os cariocas consentirem: o espetáculo já foi visto por mais de 20 mil pessoas em apenas três meses e foi um dos dois únicos na cidade a manter as cortinas abertas durante os quatro dias do Carnaval. O musical é inspirado na vida da americana Florence Foster Jenkins, que conquistou a incômoda unanimidade de ser apontada como a pior cantora de todos os tempos -o que não a impedia de ostentar, entre seus fãs, os compositores Cole Porter e Noel Coward.

Quando ouviu a voz de Florence pela primeira vez, em um CD enviado de presente por um amigo jornalista, Marília confessa que sentiu pena. "Como eu faço aulas de canto há muitos anos, percebo o esforço insano que ela fazia para atingir as notas e não perder o ritmo", diz a atriz.

Nenhum trabalho anterior exigiu tanto de sua garganta, que ela mesma assume ser de uma fragilidade impressionante. Dirigido pelos onipresentes Charles Möeller e Claudio Botelho (dupla também responsável, entre outros, pelos espetáculos "A Noviça Rebelde" e "Beatles num Céu de Diamantes", em cartaz em São Paulo), "Gloriosa" está em cartaz de quinta a domingo. A partir de quarta, Marília já começa a falar menos e mergulha em algo muito próximo do mutismo da manhã de quinta até o último grito de "bravo!" na noite de domingo. "Eu achei que seria facílimo cantar desafinado. O problema é que eu me empolgo com as gargalhadas da plateia e coloco um volume cada vez mais alto nessa desafinação. Chego a abusar das notas muito agudas e acabo ferindo as cordas vocais."

TÉCNICA ANTIPAPARAZZI

Mas Florence Jenkins não é a única culpada por essa disciplina silenciosa a qual a atriz tem se obrigado nos últimos tempos.

Enquanto fecha as persianas da sala de visitas do tríplex onde mora há 20 anos, com vista parcial para a lagoa Rodrigo de Freitas, em uma tarde em que os termômetros cariocas esbarravam nos 37ºC, a atriz revelou que está se tornando avessa a entrevistas por acreditar já ter dito tudo que pudesse provocar algum interesse. "Não quero me transformar em alguém que vive repetindo as mesmas histórias. A pessoa envelhece e sempre começa seu discurso dizendo que no tempo dela as coisas eram assim ou assado. Eu não quero parecer uma velhinha gagá com suas historinhas recorrentes. Uma forma de evitar isso é dar menos entrevistas." Em relação aos paparazzi, percebeu que o que funciona é o oposto dessa técnica: quando eles surgem em seu caminho, ela costuma se mostrar tão acessível e simpática que, diante da facilidade da presa, eles preferem trocá-la por alvos mais excitantes.

Ainda que algumas histórias trazidas à luz por Marília Pêra não tenham a mesma pungência de um furo de reportagem, seu magnetismo pessoal e o controle cênico que exerce sobre uma plateia formada apenas pela reportagem de Serafina, dois fotógrafos e sua equipe de maquiagem são tão impactantes que até mesmo um relato sobre a expulsão de Adão e Eva do paraíso, em sua inconfundível entonação, ganharia contornos de ineditismo. "As pessoas costumam se referir ao meu perfeccionismo como se fosse algo assustador, mas não é. Eu me formei em balé clássico e piano, duas coisas que exigem rigor, dedicação e força. Já cheguei a ver meus pés sangrando depois de dez aulas de balé", diz. "E, desde muito menina, eu via os velhos atores, que são muito diferentes dos jovens atores, chegando ao teatro às nove horas da manhã. Eles faziam uma peça por semana, de segunda a segunda. Para mim, é sempre um esforço muito grande me adaptar a uma coisa mais frouxa como vemos hoje. O país da gente é um país sem rigor e sem lei. E que está se tornando cada vez pior."

ANOS DE DIVÃ

A atriz, que foi casada com um psicanalista durante dez anos, diz que já se deitou em muito divã na vida até aceitar que havia um mundo de verdade para além das coxias de um teatro. O que é compreensível quando se leva em conta que sua avó e sua mãe eram atrizes, que seu pai e seu tio eram atores, que sua irmã é atriz, que seus três filhos estão na carreira artística e que ela própria pisou pela primeira vez em um palco aos quatro anos, numa tragédia de Eurípides. Também aos quatro anos, durante uma turnê pelo Nordeste, viu seu pequeno cachê sendo usado para pagar as despesas da pensão em que estava hospedada com a família, pois a carteira do pai, com o salário dele e da mãe, acabara de ser roubada. "Eu não conheci outra vida além do palco. O mundo para mim era assim, um circo. A gente nascia ali e ali a gente continuava a profissão. Dos meus familiares artistas, fui a primeira a dar certo na carreira. Eu penso que deveria ter encaminhado meus filhos para outras profissões mais sólidas, mas não fiz isso." Ricardo Graça Mello, filho do primeiro casamento de Marília Pêra, com o ator e músico Paulo César da Graça Mello, e que nasceu quando a atriz tinha 18 anos, é ator e cantor de musicais. "Ele canta tão bem... e é tão magrinho", diz. De sua união de 15 anos com o jornalista e produtor musical Nelson Motta, nasceram Esperança, que agora trabalha como assistente de direção em filmes e publicidade, e Nina, atriz a quem Marília repete sempre um ensinamento como se fosse um mantra: é preciso ter perseverança. Dos três filhos, Nina é a que mais recorre à experiência materna às vésperas dos testes. "Ela vem até aqui para que possamos ensaiar juntas. E eu digo sempre a ela: não desista, faça teatro nem que seja num fundo de quintal para dez pessoas na plateia."

MORRER AOS 45

Marília está casada há 12 anos com o produtor de cinema Bruno Faria, com quem acaba de comprar os direitos de "Vórtice", a primeira peça de Noel Coward, escrita em 1924 e que pode vir a ser o trabalho seguinte a "Gloriosa", embora sua cabeça não pense em outra coisa além de férias.

Recentemente, levou a mãe, a atriz Dinorah Marzullo, que completa 90 anos nesta segunda-feira, dia 30, para morar com ela no tríplex da Lagoa -de onde a família, cansada de tantas escadas, pretende se mudar nos próximos meses para um apartamento em Ipanema ou no Leblon, sem levar absolutamente nada da residência atual. Difícil acreditar que Marília consiga deixar para trás as dezenas de porta-retratos com imagens dos filhos e dos seus trabalhos anteriores, que parecem disputar o espaço da sala de paredes brancas com antigos vinis de Zezé Mota, Gal Costa e Elis Regina e CDs das cantoras Madeleine Peyroux, Ute Lemper e Peggy Lee, espalhados sobre seu aparelho de som.

É ao observar a mãe todos os dias, principalmente durante o sono, que Marília aprende a fazer as pazes com a passagem do tempo. A mãe, afirma, é uma mulher tão miúda quanto ela -Marília tem 1,62m e pesa 48 quilos- e exibe uma serenidade que conforta essa atriz que, aos 15 anos, acreditava que era melhor morrer aos 45, pois a vida não reservaria mais nenhuma saída após essa idade. "E então eu fiz 60 anos e vi que 60 era um número tão distante de mim. De repente, eu tenho 66 e vejo minha mãe, com uma pele linda, tão lúcida e interessada nas coisas. Acho que o fato de ela estar viva e relativamente bem me dá a esperança de mais alguns anos com vigor. Tomara que seja assim."

Como não se fia apenas na delicadeza da contemplação materna para se manter em forma, a atriz faz diariamente exercícios físicos, entre eles um pouco de musculação. Toma vinho e segue uma dieta à base de arroz integral, soja, feijão-azul, legumes e verduras. Frituras, como as duas coxinhas que comeu durante a entrevista, apenas uma vez por mês. Mas todas as suas crenças, no momento, estão depositadas em um novo regime: assim que acorda, e antes mesmo de escovar os dentes, ela toma pausadamente quatro copos de água sem gelo e, em seguida, respeita um jejum de 45 minutos, 20 dos quais usados para meditar. À noite, ela se entrega a outra sessão de meditação, quieta na cama, sem recorrer a nenhum mantra, até para respeitar o sono do marido ao lado. "Talvez eu nem saiba direito o que seja meditar, o que eu preciso é do silêncio que essa prática me oferece. Eu necessito dessa quietude todos os dias, um tempo para a minha solidão, ou eu adoeço."

Ainda que seu rosto seja um desses raros patrimônios dos palcos e das telas, Marília Pêra diz que até hoje não conseguiu dominar a "menina-ostra" que um dia ela foi, retraída e apelidada no fim dos anos 50 de "corcundinha" pelo diretor e coreógrafo Johnny Franklin -ele chegou a vaticinar que ela jamais viria a ser alguém na vida. "Por causa da profissão, eu fui violentando aquela 'menina-ostra'. Há quem goste de aparecer, eu não gosto." Talvez seja uma precaução típica de quem, em seu íntimo, desconfie do valor da pérola.

P.S.:Johnny Franklin errou feio em sua previsão.

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