Pandemia deve dificultar ainda mais a vida de profissionais com deformidades visíveis

Preconceito em relação à aparência pode se intensificar com aumento de interações por vídeo

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Londres | Financial Times

Muito antes que o coronavírus forçasse o mundo a trabalhar em casa, Brenda Finn já sabia qual é a sensação de ser alijada socialmente.

Não por um vírus, mas pela alopecia, uma condição imunológica que causou queda completa dos seus cabelos castanhos, que antes da doença ela costumava usar na altura dos ombros.

A alopecia também fazia com que bastasse coçar suas sobrancelhas para arrancá-las. Ela tinha 14 anos, e os “bullies” se divertiram. “A coisa ficou tão ruim que acabei estudando em casa. Dos 14 aos 17 anos, eu me recusava a sair. Minha casa era o único lugar seguro para mim”, diz Brenda.

Ela acabou deixando o isolamento e se transformou em artista de shows infantis. Mais tarde, passou a trabalhar no comércio.

Brenda tem problemas de saúde que requerem que ela se proteja e passou os últimos quatro meses em uma “bolha mental” privada, protegida contra o vírus e em companhia apenas de seu parceiro.

Agora ela tem uma escolha a fazer: enfrentar o metrô de Londres para retomar seu emprego de meio período como vendedora da Camden Watch Company, o que ela estaria oficialmente autorizada a fazer a partir de agosto, ou manter-se segura em sua casa, protegida contra infecções, mas correr o risco de uma vez mais se isolar em si mesma.

Antes do lockdown, “eu tinha todo um esquema para demonstrar produtos aos clientes, quase uma coreografia”, ela diz. “Agora fico pensando que vou me preocupar demais com a segurança e talvez nem consiga chegar à loja."

Becky Hewitt é presidente-executiva da Changing Faces, uma ONG britânica que apoia pessoas que portem diferenças visíveis. Ela diz que para alguns de seus clientes, o lockdown redespertou lembranças de tempos em que se sentiam desconfortáveis ao encontrar desconhecidos.

Outros dizem que temem esquecer as estratégias de que dependem para se sentirem socialmente amparados –como se “perdessem o controle de um músculo que ficou sem uso por um bom tempo”– e alguns confidenciaram que seus sentimentos sobre o fim do lockdown eram contraditórios.

“É estranho, não que eu vá sentir falta disso, mas ao mesmo tempo é bom poder me levantar sem ter de debater comigo mesmo como me sinto –se é melhor sair de cabeça coberta ou se consigo sair sem me preocupar com isso”, disse Brenda.

Os olhares espantados e comentários que podem transformar uma saída para comprar leite na loja da esquina em um teste de resistência, e o preconceito do qual essas reações derivam, se fazem presentes nos locais de trabalho.

Foram necessárias décadas, e terapia, para que Phil Gorf, gerente sênior na divisão de varejo e consumo da DHL Supply Chain, se sentisse confortável ao sair à rua. Quando era jovem e estava procurando emprego, ele sofreu rejeições muito dolorosas.

Um entrevistador, ao ver a marca de nascença que ele porta, disse, sem pensar duas vezes, que “não posso enviar uma pessoa com essa cara para visitar clientes”. Outro entrevistador, em uma empresa de infraestrutura, lhe perguntou se “esse treco na sua cara vai infectar o abastecimento de água”.

Agora, quando ele visita os armazéns de sua empresa, tenta identificar trabalhadores que sejam capazes de beneficiar os negócios ainda que “possam parecer um pouco diferentes”, mas suas buscas em geral são infrutíferas. “Será que eles estão sendo rejeitados no processo seletivo ou será que nem têm coragem de se candidatar?”, questiona Gorf.

Kathleen Bogart, diretora do Laboratório de Deficiências e Interação Social na Universidade Estadual do Oregon, diz que, embora a maioria dos empregadores hoje cuide para não exprimir preconceitos abertamente, as pessoas ainda tomam decisões com base em aparência física.

“Os empregadores em geral fazem coisas sutis como não colocar determinado empregado em um papel de contato com o público, ou não o promovem, porque pessoas desfiguradas são percebidas como carentes das competências sociais necessárias aos líderes de alto nível."

A força do preconceito é tamanha, ela diz, que pessoas que sofrem de paralisia facial se sentem mais estigmatizadas do que pessoas com problemas de saúde mais incapacitantes, como o Mal de Parkinson.

Os hábitos adquiridos no lockdown e que persistirão mais tarde darão nova forma às normas que governam como as pessoas trabalham, e muitos comentaristas preveem uma virada mais permanente na direção do trabalho virtual.

James Partridge, autor de “Face It: Facial Disfigurement and My Fight for Face Equality”, e fundador da Face Equality International, uma aliança internacional que luta pelos direitos das pessoas desfiguradas, diz que ele “troca apertos de mão vigorosos, olha as pessoas nos olhos e emprega uma linguagem corporal positiva”, ao encontrar pessoas.

Essa rotina dá tempo aos interlocutores para que se acostumem às cicatrizes de queimadura em seu rosto “sem sentir que esse é o grande assunto na sala” e permite que ele “gere um clima positivo”. Em uma conversa por vídeo isso é mais difícil, “a não ser que você conheça bem as pessoas”.

Outros aspectos de uma cultura de contato via vídeo que podem criar problemas para pessoas desfiguradas incluem a pressão comercial sobre os trabalhadores em home office para que melhorem sua aparência por meio dos “filtros de beleza” incorporados às mais recentes tecnologias de videoconferência, e o estímulo que a pandemia deu à contratação de pessoal via vídeo.

Mesmo em épocas normais, candidatos desfigurados já começam em desvantagem, diz Hewitt. Além de administrar seu nervosismo e suas reações, eles precisam “administrar e compensar” as reações do entrevistador.

Essa desvantagem pode aumentar, agora, adverte Bogart, porque, à medida que os contatos entre trabalhadores acontecerem mais e mais via vídeo, os olhares tenderão a se concentrar no rosto da pessoa que estiver falando.

Do lado positivo, há medidas que podem ser tomadas para reduzir o risco de confundir boa aparência e competência. Como princípio geral, Anjan Chatterjee, diretor do Penn Center for Neuroaesthetics, na Universidade da Pensilvânia, recomenda que os comitês de contratação sejam tão diversificados quanto possível.

Estar aberto à ideia de que você talvez tenha preconceitos de aparência, ele diz, é um passo na direção de superá-los, porque todos nós “somos péssimos em julgar nossos vieses”.

Claire Shepherd, que administra o crescimento de lucros na companhia de cosméticos Avon, sofre de eczema severo. Ela diz que a experiência compartilhada das longas semanas de lockdown, sem acesso a salões de beleza e cabeleireiros, lhe ofereceu uma oportunidade de explicar aos colegas qual é a sensação de viver com uma diferença visível a cada dia. “É aquela ligeira hesitação que você sente ao sair porta afora, a sensação de saber que as coisas não estão completamente certas."

Para ajudar a pôr fim a um preconceito que limita vidas desnecessariamente, a Changing Faces está convocando os empregadores a aderir à sua campanha #PledgeToBeSeen, e para que representem toda a diversidade da aparência humana em suas marcas e nas equipes que empregam para contato direto com clientes.

Em apoio à Face Equality Week, em maio, a Avon, um dos signatários do compromisso, lançou a fragrância Herstory, que celebra mulheres que subverteram as noções convencionais de beleza. Para Brenda, que liderou o lançamento digital de Herstory, saber que sua história pessoal estava sendo compartilhada quando tanta gente estava se sentindo isolada e vulnerável representa um sinal de que a sociedade está aos poucos mudando para melhor.

“Quando voltarmos a viver como antes, espero que todos sejamos um pouco mais conscientes e compassivos com relação às diferenças uns dos outros”, ela diz.

OS MALES OCULTOS DO ISOLAMENTO

Uma aparência alterada aumenta o estresse de uma vida em lockdown de maneiras que os colegas talvez não suspeitem.

Para Brenda Finn, o isolamento é um “lembrete de que as memórias não desaparecem completamente, e os sentimentos que as acompanham tampouco”. Para Claire Shepherd, para quem pequenas mudanças ambientais como “uma nova disposição da mobília no local no trabalho” podem provocar episódios de dor intensa, a maior preocupação é como sua pele reagirá quando ela voltar depois de tanto tempo fora do escritório.

Em um dia comum, aplicar pomadas e cremes estende em meia hora sua rotina matinal, e à noite a mesma coisa acontece. “Em um dia ruim., preciso de três horas a mais para o tratamento, além de tudo mais: ir ao trabalho, ir à academia, tentar me encontrar com os amigos com quem normalmente me encontraria."

Shepherd já tem uma jornada de trabalho flexível e sabe que seus empregadores a apoiarão para que possa administrar sua condição. No caso de outros empregadores, ela diz, “é questão de a pessoa decidir se dedica o tempo necessário a aplicar os cremes ou chega na hora ao trabalho”.

Tradução de Paulo Migliacci

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