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Casa inteligente vira arma de vingança na mão de parceiros abusivos

Tony Luong/NYT
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
Erica Olsen, diretora do Projeto Rede de Segurança, na Rede Nacional pelo Fim da Violência Doméstica

Pessoas que ligaram para abrigos e linhas de assistência contra a violência doméstica disseram que a sensação era a de que estavam enlouquecendo.

Uma mulher ligou o ar condicionado, mas disse que ele se desligou automaticamente sem que ela tocasse o aparelho. Outra disse que a senha da fechadura de sua casa mudava a cada dia, e que ela não sabia o motivo.

Ainda outra disse ao atendente de uma linha de assistência a vítimas de abuso que estava ouvindo a campainha tocar, mas não havia pessoa alguma na porta.

As histórias dessas mulheres são parte de um novo padrão de comportamento em casos de abuso doméstico vinculados à tecnologia de smart homes. Fechaduras, alto-falantes, termostatos, luzes e câmeras conectados à internet, divulgados na mídia como as mais recentes conveniências, agora também estão sendo usados como forma de assediar, vigiar, controlar e obter vingança.

Em mais de 30 entrevistas conduzidas pelo The New York Times, vítimas de abusos domésticos, seus advogados, funcionários de abrigos que as auxiliam e funcionários de serviços de emergência descreveram de que maneira essas tecnologias estavam sendo transformadas em uma nova e alarmante ferramenta.

Os perpetradores –usando apps instalados em seus smartphones, que permitem conexão com os aparelhos eletrônicos domésticos dotados de aceso à internet controlam remotamente objetos de uso diário nas casas das vítimas, às vezes para vigiá-las ou gravar suas conversas, às vezes para assustá-las e demonstrar poder. Mesmo quando um parceiro amoroso deixa a casa, os aparelhos muitas vezes permanecem, e continuam a ser usados para intimidar e confundir.

Para as vítimas e os atendentes dos serviços de emergência, a experiência é muitas vezes agravada pela falta de conhecimento sobre como funciona a tecnologia das casas inteligentes, que poder uma pessoa pode exercer sobre os aparelhos, como lidar com esse tipo de comportamento legalmente, e como impedir que esse tipo de coisa aconteça.

"As pessoas começaram a levantar a mão e perguntar o que fazer a respeito disso", disse Erica Olsen, diretora do Projeto Rede de Segurança, na Rede Nacional pelo Fim da Violência Doméstica, uma organização ativista americana, sobre os participantes de palestras que ela organiza para discutir tecnologia e abuso. Ela disse que antes hesitava em discutir o uso indevido de tecnologias emergentes porque "não queríamos colocar essa ideia em circulação, mas ela se tornou tão comum que não faz mais sentido exercitar esse tipo de cautela".

Algumas das maiores empresas de tecnologia fazem produtos para casas inteligentes, como o alto-falante Echo da Amazon e o termostato inteligente Nest, da Alphabet. Os aparelhos são tipicamente posicionados em termos de marketing como companheiros prestativos, que mesmo quando a pessoa esteja de férias permitem que ela cuide de sua casa a distância.

Alguns fabricantes de aparelhos conectados disseram não ter recebido relatórios sobre o uso de seus produtos em situações abusivas. Os aparelhos podem ser desabilitados por botões de reset ou uma mudança na senha da rede de wi-fi caseira, mas os fabricantes dizem que não existe uma solução universal. Facilitar a transferência de controle sobre a conta que administra os aparelhos de uma casa inteligente pode inadvertidamente facilitar o acesso de hackers criminosos.

Nenhuma organização ou pesquisador parece estar rastreando o uso de aparelhos conectados à internet em casos de abuso doméstico, porque a tecnologia é relativamente nova, ainda que esteja avançando rapidamente. Em 2017, 29 milhões de moradias nos Estados Unidos contavam com alguma forma de tecnologia inteligente, de acordo com um relatório da consultoria McKinsey, que calculou que a penetração desse tipo de aparelho vem crescendo em 31% ao ano.

Karsten Moran/NYT
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
Cada vez mais, hackers abusadores são capazes de sequestrar aparelhos domésticos conectados à internet para monitorar, assediar e se vingar

Aparelhos caseiros conectados vêm sendo parte cada vez maior de casos de abuso doméstico, nos 12 últimos meses, de acordo com pessoas que trabalham com vítimas de violência doméstica. Os atendentes de linhas telefônicas de assistência disseram que nos últimos 12 meses, mais pessoas estavam ligando com queixas quanto a perda de controle sobre portas, alto-falantes, termostatos, luzes e câmeras acionáveis por wi-fi. Advogados também disseram que estavam enfrentando dificuldades quanto à terminologia que precisa ser adotada na solicitação de liminares que restringem o contato entre ex-parceiros e queixosos, de modo a cobrir a tecnologia para smart homes.

Muneerah Budhwani, atendente na Linha Nacional de Assistência a Vítimas de Violência Doméstica americana, disse ter começado a ouvir histórias sobre situações de abuso e equipamentos associados a casas inteligentes no começo deste ano. "As queixosas contavam que os perpetradores as vigiavam e controlavam a distância por meio de aplicativos para casas inteligentes e do sistema da smart home", ela disse.

Graciela Rodriguez, que dirige um abrigo de emergência com 30 leitos no Centro para a Paz Doméstica, em San Rafael, Califórnia, disse que algumas mulheres a haviam procurado recentemente com histórias sobre "coisas que enlouquecem", como termostatos que subitamente elevam a temperatura da casa para 37ºC, ou alto-falantes inteligentes que começam a tocar música barulhenta.

"Elas sentem estar perdendo o controle de suas casas", disse Rodriguez. "Depois que passam alguns dias aqui, percebem que estão sendo vítimas de abuso".

A tecnologia de casas inteligentes pode ser apropriada facilmente para uso indevido, por diversas razões. Ferramentas como câmeras domésticas de segurança são relativamente baratas –algumas delas saem por apenas US$ 40 (R$ 151)– e instalá-las é fácil. Usualmente, uma das pessoas de um casal se encarrega de instalar a tecnologia, sabe como ela funciona e tem todas as senhas. Isso confere a essa pessoa o poder de usar a tecnologia contra a outra.

Os funcionários de serviços de emergência dizem que muitas das vítimas de abusos relacionados às casas inteligentes são mulheres.

Aparelhos domésticos conectados costumam ser instalados por homens, disse Melissa Gregg, diretora de pesquisa da Intel que está trabalhando quanto às implicações da tecnologia para casas inteligentes. Muitas mulheres não contam com todos os apps em seus smartphones, disse Jenny Kennedy, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade RMIT, em Melbourne, Austrália, que está pesquisando sobre famílias que instalam tecnologia inteligente em suas casas. (Um terço das mulheres e um quarto dos homens foram vítimas de violência física ou perseguição por parte de um parceiro íntimo, de acordo com um relatório do Centro para o Controle de Doenças americano publicado em 2010.)

As pessoas que falaram ao The New York Times sobre o assédio sofrido por meio de aparelhos para casas inteligentes eram todas mulheres, muitas moradoras de bairros de alta renda onde esse tipo de tecnologia vem avançando rapidamente. Elas se recusaram a autorizar a divulgação de seus nomes, mencionando preocupações de segurança e planos para deixar parceiros praticantes de abusos. As histórias que elas contaram foram corroboradas por trabalhadores e advogados que lidam com casos de violência doméstica.

Todas elas disseram que o uso de aparelhos conectados à Internet por seus perseguidores foi invasivo –uma delas definiu a prática como uma forma de "guerra na selva", porque era difícil distinguir de onde vinham os ataques. Também descreveram a situação como uma assimetria de poder, porque seus parceiros tinham controle sobre a tecnologia e, por extensão, sobre elas.

Uma das mulheres, médica no Vale do Silício, disse que seu marido, engenheiro, "controla o termostato. Controla as luzes. Controla a música". Ela disse que "relacionamentos abusivos giram em torno de poder e controle, e ele controla a tecnologia".

Ela disse não saber como toda a tecnologia funciona ou exatamente como retirar o nome de seu marido das contas. Mas afirma que seu sonho é retomar a tecnologia, em breve.

"Tenho um plano de saída específico, que estou colocando em operação, e uma de minhas fantasias é poder dizer 'Google, toque a música que eu quero'", ela afirmou. Já o plano quanto ao termostato inteligente é "arrancá-lo da parede", ela disse.

Quando uma vítima desinstala os aparelhos, isso pode agravar a situação e gerar um conflito, dizem os especialistas. "O abusador pode perceber que o aparelho está inativo, e isso pode gerar mais violência", disse Jennifer Becker, advogada da Legal Momentum, uma organização que defende os direitos legais das mulheres.

Eva Galperin, diretora de segurança cibernética da Electronic Freedom Foundation, organização que defende os direitos de privacidade na mídia digital, disse que desabilitar os aparelhos também pode servir para isolar ainda mais a vítima. "Elas não sabem bem como o abusador consegue entrar, e podem não descobrir porque não sabem como os sistemas funcionam", disse Galperin. "Simplesmente desligam tudo, o que as isola ainda mais".

Anastasiia Sapon/NYT
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
Ruth Patrick, que comanda o WomenSV, um programa contra violência doméstica no Vale do Silício

As possibilidades de defesa legal podem ser limitadas. Os abusadores aprenderam a usar a tecnologia das casas inteligentes para aumentar seu poder e controle de maneiras que muitas vezes escapam aos limites das leis existentes disse Becker. Em alguns casos, ela disse, se um deles coloca em circulação um vídeo obtido por uma câmera de segurança no interior da casa da vítima, isso poderia representar violação das leis de alguns estados contra uso de material pornográfico para fins de vingança, criadas para impedir que ex-parceiros compartilhem vídeos e fotografias íntimos online.

Os ativistas estão começando a educar o pessoal que trabalha na assistência a vítimas de que é preciso incluir, em qualquer pedido de liminar de restrição de contato, todas as contas de equipamentos de segurança da casa inteligente, conhecidas ou desconhecidas das vítimas. Muita gente não está ciente da necessidade de solicitar essa medida ainda, disse Becker. Mas mesmo que a queixosa consiga uma liminar, mudar remotamente a temperatura da casa ou ligar e desligar a TV ou as luzes sem aviso pode não representar violação de uma ordem de restrição contato.

Policiais e trabalhadores da área de justiça disseram que a tecnologia era nova demais para ter surgido em seus casos, ainda que suspeitem que esse tipo de atividade esteja ocorrendo.

"Tenho certeza de que está acontecendo", disse Zach Perron, capitão do departamento de polícia de Palo Alto, Califórnia. "Faz completo sentido, sabendo o que sei sobre a psicologia dos suspeitos de violência doméstica. Violência doméstica gira em torno de controle –as pessoas pensam em violência física, mas há violência emocional, também".

Algumas pessoas não veem o uso de aparelhos para casas inteligentes como problema, disse Ruth Patrick, diretora do WomenSV, um programa de combate à violência doméstica no Vale do Silício. Ela disse que algumas de suas clientes foram internadas contra a vontade em clínicas psiquiátricas –para avaliação de sua saúde mental– depois de abusos envolvendo equipamentos de uso doméstico.

"Se uma mulher diz à pessoa errada que seu marido vê tudo que ela faz, que ele sabe o que ela disse no quarto, pode parecer ela está enlouquecendo", disse Patrick. "É muito mais fácil acreditar que alguém está louca do que acreditar que essas coisas estão acontecendo".

É essencial pedir a todos os moradores de uma casa que compreendam a tecnologia inteligente em uso nela.

"Quando aparece uma tecnologia nova, muita gente pensa que sua vida vai ficar bem melhor", disse Katie Ray-Jones, presidente da Linha Nacional de Assistência a Vítimas de Violência Doméstica. "Mas muitas vezes vemos o oposto, nas sobreviventes de violência doméstica".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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