Descrição de chapéu Financial Times The New York Times

Paul Allen se dizia intimidado por Bill Gates e teve forte atuação como filantropo

Bilionário doou mais de US$ 2 bi e tocou projetos que revitalizaram Seattle

San Francisco e Nova York (EUA) | Financial Times e The New York Times

Se a história oferece apenas uma oportunidade para que alguém faça diferença real, Paul Allen aproveitou a sua ao máximo.

O cofundador da Microsoft, que morreu aos 65 anos nesta segunda-feira (15), não exibia o carisma e a garra que fizeram de Bill Gates a principal força por trás da ascensão da produtora de software. Por ter deixado a empresa em 1983, antes que a Microsoft tivesse anunciado o sistema operacional Windows, ele não esteve associado aos anos de domínio da companhia sobre o setor de tecnologia.

Mas sua percepção aguda quanto às mudanças da tecnologia em sua era, e sua impaciência quanto a dar forma ao setor cuja ascensão ele antevia, foram cruciais para colocar em movimento o mundo de computação pessoal onipresente em que hoje vivemos.

A parceria com Gates ganhou forma quando os dois ainda estavam na escola. Eles se conheceram como membros do clube de computação da Lakeside, uma escola particular de Seattle na qual Allen servia como irmão mais velho para Gates, mais precoce e mais esquentado.

O relacionamento deles —criativo e antagônico— se estendeu até os anos iniciais da Microsoft. Gates, esforçado e pragmático, e Allen, a parte mais cerebral da dupla, inicialmente se complementavam bem. Mas o relacionamento deixou marcas em Allen, uma pessoa mais sensível. Ele posteriormente descreveria a cultura da Microsoft como "um ambiente de autoflagelação", por conta da agressividade intelectual e inflexibilidade de Gates.

Em "Idea Man", o livro de memórias que publicaria posteriormente, Allen se descreve como um sujeito visionário e não muito prático, que se viu progressivamente alijado da companhia que ajudou a fundar. Ele descreve ter sido pressionado por Gates a ceder porção maior do que considerava justa, de sua participação na companhia.

O ponto mais baixo do relacionamento surgiu quando ele flagrou Gates e Steve Ballmer, o principal executivo de negócios da Microsoft, discutindo como reduzir sua influência e sua participação acionária na empresa. Allen deixou a companhia pouco depois.

Mas ele passou longe de ser uma vítima. Ao deixar a Microsoft, teve o bom senso de não vender suas ações ao preço medíocre que Gates ofereceu, e em lugar disso apostou firmemente em seu ex-parceiro.

Gates fez da Microsoft a empresa mais temida do setor de tecnologia, e enriqueceu Allen como resultado.

Fortuna e novos negócios

A revista Forbes estimava sua fortuna em mais de US$ 20 bilhões (R$ 74,6 bilhões) no momento de sua morte, o que fazia de Allen a 21ª pessoa mais rica do mundo. Ele nunca hesitou em alardear essa riqueza, comprando um iate que descrevia vaidosamente como o quarto mais longo do planeta.

Colocar essa fortuna em uso determinou a segunda metade da vida de Allen. Entre outras coisas, ele comprou equipes profissionais de esportes —um traço comum na elite dos negócios dos Estados Unidos.

Allen descreveu a aquisição do Portland Trail Blazers, um time de basquete, como culminação de uma paixão pessoal. Já a compra do Seattle Seahawks, no futebol americano, foi "um dever cívico": reconstruir o estádio do time foi a peça central no projeto de redesenvolvimento urbano de uma área crucial da cidade.

Como investidor, Allen passou por alguns desastres, entre os quais os US$ 8 bilhões que ele queimou para construir um império de TV a cabo, sobrecarregado de dívidas. Em lugar de se enquadrar à ideia popular de um visionário imerso em um dado ramo da tecnologia, ele demonstrava interesse eclético por diversos campos da ciência, perspicácia quanto a avanços com resultados práticos importantes, e a disposição de apostar porções consideráveis de sua fortuna.

Um resultado disso foi seu apoio a Burt Rutan, um dos pioneiros da exploração espacial pelo setor privado. Com dinheiro de Allen, Rutan conquistou o Ansari X Prize, um prêmio de US$ 10 milhões para um projeto privado de espaçonave que se tornou modelo para muitos prêmios de tecnologia subsequentes.

No começo desta década, ele formou nova parceria com Rutan para o Stratolaunch, um veículo aéreo para lançamento de espaçonaves cujos primeiros voos de teste devem acontecer no ano que vem.

Filantropia

Seus projetos filantrópicos e investimentos nas fronteiras da pesquisa científica incluíram a criação de novos institutos de pesquisa para estudar o cérebro e a inteligência artificial.

Allen doou mais de US$ 2 bilhões (R$ 7,46 bilhões) a organizações sem fins lucrativos dedicadas a promover o avanço da ciência, tecnologia, educação, meio ambiente e arte. Entre as organizações de pesquisa científica que ele bancou estão o Instituto Allen de Ciência Cerebral, em 2003, e o Instituto Allen de Inteligência Artificial, em 2004.

E embora parte de seus projetos filantrópicos tivessem alcance mundial, como sua paixão por impedir a caça clandestina de elefantes, boa parte de seu trabalho pós-Microsoft se concentrou em Seattle, onde Allen se tornou uma força transformadora e apoiou muitas das principais instituições culturais da cidade.

Ele restaurou o velho cinema Cinerama, equipando-o com tecnologia que torna a sala ideal para ver filmes de ficção científica, e contratou o arquiteto Frank Gehry para projetar o Museu da Cultura Pop, fundado por Allen em 2000 sob o nome Experience Music Project. O edifício exótico, ondulado, tem em exposição itens que revelam as obsessões culturais de Allen, entre as quais guitarras que um dia pertenceram a Jimi Hendrix e a cadeira de comando do Capitão Kirk na série de TV "Jornada nas Estrelas", da década de 1960.

Na década de 1990, ele adquiriu terrenos no bairro de South Lake Union para ajudar a construir uma versão do Central Park em Seattle, mas a população da cidade terminou rejeitando o plano em um referendo. Sua empresa, Vulcan, então converteu os terrenos no complexo que sedia a Amazon.

O Google e outras empresas de tecnologia também abriram escritórios no bairro, agora revitalizado.

"Ele tem um papel definitivo naquilo que definimos como Seattle hoje, uma cidade que gira em torno de tecnologia, imóveis e uma cultura local com visibilidade internacional", disse Margaret O'Mara, professora de história na Universidade de Washington.

Esporte

De todos os seus investimentos, o controle de equipes de esportes profissionais foi um dos mais incongruentes. Os donos de equipes esportivas, gostem ou não, sempre atraem interesse, e Allen geralmente preferia evitar a atenção da mídia.

Mas aos 35 anos, em 1988, ele adquiriu o Portland Trail Blazers e prometeu manter o time na cidade, uma das menores entre as representadas na NBA. Ele muitas vezes viajava de Seattle para assistir os jogos da equipe, em companhia de sua mãe. Logo depois que Allen tomou o controle do time, o Trail Blazers teve um de seus melhores períodos na liga, chegando às finais da NBA duas vezes em três anos, e perdendo nos dois casos.

Na metade da década de 1990, Ken Behring, o dono do Seahawks, um time de futebol americano na cidade natal de Allen, estava considerando transferi-lo para Los Angeles, porque não havia conseguido obter financiamento público para a construção de um novo estádio em Seattle. Allen foi instado a interferir, para manter o time na cidade.

Em 1996, ele adquiriu uma opção exclusiva para adquirir o time de Behring até julho de 1997, e a exerceu, tomando o controle do time por US$ 194 milhões (R$ 723 milhões).

Allen decidiu construir um novo lar para o time no centro da cidade. O Seahawks se transferiu para o CenturyLink Field em 2002, e Allen gastou centenas de milhões de dólares atualizando o estádio.

Ainda que falasse com a mídia raramente, sua presença nos jogos era frequente —às vezes erguendo a bandeira "12", que representa a torcida— antes do início da partida, um ritual do Seahawks.

Uma das empresas de Allen também detém participação no Seattle Sounders, uma das equipes mais bem sucedidas da Major League Soccer, ganhadora do título da principal liga de futebol dos Estados Unidos em 2016.

Não está claro o que acontecerá com os times de Allen; os detalhes de seu espólio não são conhecidos. O Seahawks vale US$ 2,58 bilhões (R$ 9,62 bilhões), de acordo com estimativas recentes. Poucos clubes da NFL e NBA costumam mudar de mãos, e por isso qualquer venda deve atrair ofertas substanciais.

Paul Gardner Allen nasceu em 21 de janeiro de 1953 em Seattle, filho de Kenneth e Edna (Faye) Allen. Seu pai era bibliotecário e sua mãe professora. Ele deixa uma irmã, Jody Allen.

Três anos atrás, para celebrar o 40º aniversário da Microsoft, Allen postou no Twitter algumas linhas de código para o primeiro software produzido pela empresa. No topo, se lia: "copyright 1975, por Bill Gates e Paul Allen".

"É estranho ver um trecho de código que você escreveu 40 anos atrás e pensar que isso levou a Microsoft para onde ela se encontra hoje", disse Allen na época. Ele parecia genuinamente admirado.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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