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Tim Berners-Lee criou a web, e agora quer reformar o mundo digital

Aos 65, cientista diz que o mundo online enlouqueceu, e busca meios de avançar com 'a web que queria originalmente'

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The New York Times

Trinta anos atrás, Tim Berners-Lee inventou padrões simples, mas potentes, para localizar, conectar e apresentar documentos multimídia online. Ele os libertou para o mundo, lançando a World Wide Web.

Outros se tornaram bilionários com a internet, enquanto Berners-Lee virou o condutor das normas técnicas que visavam ajudar a web a florescer como instrumento igualitário de conexão e compartilhamento de informação.

Hoje com 65 anos, Berners-Lee acredita que o mundo online enlouqueceu. Excesso de poder e de dados pessoais, disse ele, são detidos por gigantes tecnológicas como Google e Facebook –"silos" é o termo genérico que ele prefere, em vez de se referir às empresas pelo nome. Alimentadas por vastos conjuntos de dados, disse ele, elas se tornaram plataformas de vigilância e monitoras da inovação.

Os órgãos reguladores manifestaram preocupações semelhantes. As big techs estão enfrentando regulamentos mais duros na Europa e em alguns estados americanos, liderados pela Califórnia. Google e Facebook foram atingidos por processos antitruste.

Homem veste um casaco verde militar; ele está apoiado em uma árvore
Tim Berners-Lee em casa sua casa em Oxfordshire, Inglaterra - Lola e Pani/The New York Times

Mas Berners-Lee está adotando uma abordagem diferente: sua resposta ao problema é uma tecnologia que dê mais poder aos indivíduos. O objetivo, segundo ele, é avançar para "a web que eu queria originalmente".

Os "pods" –"personal online data stores" (lojas de dados pessoais online)– são um ingrediente técnico chave para alcançar esse objetivo. A ideia é que cada pessoa controle seus próprios dados –sites visitados, compras com cartão de crédito, rotinas de exercícios, músicas escutadas– em um cofre de dados individual, geralmente uma fração do espaço no servidor.

As companhias poderiam obter acesso aos dados de uma pessoa, com permissão por meio de um link seguro, para tarefas específicas, como processar um aplicativo de empréstimo ou apresentar uma publicidade personalizada. Elas poderiam linkar e usar a informação pessoal seletivamente, mas não armazená-la.

A visão de Berners-Lee de soberania dos dados pessoais contrasta acentuadamente com o modelo de coleta e acúmulo adotado pelas grandes empresas tecnológicas. Mas tem alguns ecos da fórmula original da web --um conjunto de padrões tecnológicos que os desenvolvedores podem usar para escrever programas e que empresários e companhias podem usar para construir empresas. Ele iniciou um projeto de software de fonte aberta, chamado Solid, e mais tarde fundou uma empresa, a Inrupt, com John Bruce, um veterano de cinco startups anteriores, para estimular a adoção.

"Isto tem a ver com criar mercados", disse Berners-Lee, que é o diretor tecnológico da companhia. A Inrupt apresentou em novembro seu software de servidor para empresas e órgãos governamentais. E a startup está avançando com um punhado de projetos-piloto neste ano, incluindo alguns com o Serviço Nacional de Saúde britânico e com o governo de Flandres, a região da Bélgica de língua holandesa.

O modelo empresarial inicial da Inrupt é cobrar taxas de licenciamento por seu software comercial, que usa a tecnologia de fonte aberta Solid, mas tem ferramentas reforçadas de segurança, gerenciamento e para desenvolvedores. A companhia sediada em Boston levantou US$ 20 milhões (R$ 107 milhões) em capital de risco.

As startups, comentou Berners-Lee, podem exercer um papel crucial para acelerar a adoção de uma nova tecnologia. A web, segundo ele, realmente decolou depois que a Netscape lançou o software de navegação da web e a Red Hat levou o Linux, sistema operacional de fonte aberta, para os centros de dados corporativos.

Ao longo dos anos, empresas dedicadas a proteger a privacidade dos usuários online surgiram e desapareceram. O software dessas "infomediárias" era muitas vezes limitado e complicado, atraindo apenas os mais preocupados com a privacidade.

Mas a tecnologia se tornou mais rápida e inteligente –e a pressão sobre as big techs está crescendo.
As companhias de tecnologia formaram um Projeto de Transferência de Dados dedicado a tornar portáteis os dados pessoais que elas detêm. Hoje ele inclui Google, Facebook, Apple, Microsoft e Twitter. A Comissão Federal de Comércio dos EUA recentemente realizou um workshop "Data to Go" (algo como "dados para viagem").

"Neste ambiente regulatório em mudança, há uma oportunidade de mercado para a firma de Tim Berners-Lee e outras oferecerem melhores maneiras de os indivíduos controlarem seus dados", disse Peter Swire, especialista em privacidade na Faculdade de Administração Scheller da Universidade Tecnológica da Geórgia.

A Inrupt está apostando que as organizações confiáveis serão inicialmente as patrocinadoras dos "pods" (casulos). Eles são gratuitos para os usuários. Se o conceito pegar, poderão surgir serviços de dados pessoais de baixo custo ou grátis –semelhantes aos serviços de e-mail atuais.

O Serviço Nacional de Saúde tem trabalhado com a Inrupt em um projeto-piloto para tratamento de pacientes de demência que passa do desenvolvimento ao campo neste mês. O objetivo inicial é dar aos cuidadores acesso a uma visão mais ampla da saúde dos pacientes, suas necessidades e preferências.

Cada paciente tem um pod Solid com um formulário "Tudo sobre Mim" com informação apresentada pelo paciente ou um parente autorizado, complementando o registro de saúde eletrônico da pessoa. O pod poderia dizer que o paciente precisa de ajuda para tarefas diárias, como levantar da cama, amarrar os sapatos ou ir ao banheiro. Também poderia incluir o que acalma o paciente quando fica agitado –talvez música country ou filmes clássicos antigos. Mais tarde, dados da atividade de um Apple Watch ou Fitbit poderão ser acrescentados.

O objetivo médico, segundo Scott Watson, diretor técnico do projeto-piloto, é melhorar a saúde e dar o atendimento menos estressante ao paciente. "E é uma mudança fundamental em como compartilhamos informação nos sistemas de atenção à saúde", disse ele.

O projeto inicial começará com até 50 pacientes na região de Manchester, no Reino Unido, e será avaliado durante alguns meses.

Em Flandres, região com mais de 6 milhões de habitantes, o governo espera que a nova tecnologia de dados possa oferecer oportunidades para empresários e companhias locais e novos serviços aos cidadãos.

Os dados pessoais dos pods poderão ser ligados a dados públicos e privados para criar novos aplicativos, disse Raf Buyle, arquiteto da informação que trabalha para o governo de Flandres.

Um app potencial, disse Buyle, poderia sugerir estradas e modos de transporte para ir ao trabalho, quando as restrições da Covid-19 forem suspensas. Esse app, disse ele, poderia combinar dados de localização do smartphone da pessoa com preferências de exercícios e para redução da pegada de carbono, previsão do tempo, horários de transportes públicos e locais para pegar bicicletas gratuitas ou de aluguel.

"A maioria dos casos de uso interessante virá de companhias que criarem novos apps em cima dos dados", disse Buyle.

Para Berners-Lee, o empreendimento Solid-Inrupt é um projeto-solução. Ele passou a vida profissional defendendo o compartilhamento de informação, a abertura e o empoderamento pessoal online --como diretor do consórcio da World Wide Web, presidente do Instituto de Dados Abertos e professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e na Universidade de Oxford.

Entre seus prêmios está um Turing Award, chamado de Nobel da computação. Na Inglaterra, seu país natal, ele é cavaleiro da coroa –Sir Tim.

"Mas Tim ficou cada vez mais preocupado com o poder do mundo digital ser usado contra o indivíduo", disse Daniel Weitzner, pesquisador principal no Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência da Computação no MIT. "Essa mudança é o que a Solid e a Inrupt pretendem corrigir."

A força para dar aos indivíduos maior controle de seus dados pessoais, disse Berners-Lee, muitas vezes começa como uma questão de privacidade. Mas um novo acordo sobre dados, segundo ele, exigirá que empresários, engenheiros e investidores vejam oportunidades de novos produtos e serviços, como fizeram com a web.

A visão em longo prazo é um mercado descentralizado e pujante, alimentado por empoderamento pessoal e colaboração, disse Berners-Lee. "A visão final é muito poderosa", afirmou.

Se sua equipe poderá realizar essa visão é incerto. Alguns no campo dos dados pessoais dizem que a tecnologia da Solid-Inrupt é demasiado acadêmica para desenvolvedores da corrente dominante. Eles também questionam se a tecnologia alcançará a velocidade e o poder necessários para se tornar uma plataforma para futuros apps, como assistentes de software animados pelos dados de uma pessoa.

"Ninguém vai discutir a direção", disse Liam Broza, fundador da LifeScope, um projeto de dados de fonte aberta. "Ele está no lado certo da história. Mas o que está fazendo vai realmente funcionar?"

Outros dizem que a tecnologia Solid-Inrupt é apenas parte da solução. "Há muito trabalho fora do projeto de Berners-Lee que será vital para a visão", disse Kaliya Young, catedrática do Workshop de Identidade na Internet, cujos membros se concentram na identidade digital.

Berners-Lee disse que sua equipe não está inventando um sistema de identidade próprio, e que qualquer coisa que funcione poderá ser plugada em sua tecnologia.

O Inrupt enfrenta uma série de desafios técnicos, mas nenhum difícil demais, segundo Bruce Schneier, conhecido especialista em segurança de computadores e privacidade, que entrou na Inrupt como chefe de arquitetura de segurança.

E Schneier é um otimista. "Esta tecnologia poderá destravar uma enorme quantidade de inovação", potencialmente se tornando uma nova plataforma, como o iPhone foi para os apps de smartphones, disse ele.

"Acho que ela tem uma boa probabilidade de mudar o funcionamento da internet", disse. "Estranhamente, Tim já fez isso."

Luiz Roberto M. Gonçalves

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