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Como a China influencia os influenciadores

Governo apoia youtubers estrangeiros que tratam suas políticas de forma positiva

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Paul Mozur Raymond Zhong Aaron Krolik
Nova York | The New York Times

Milhões de pessoas assistiram aos vídeos de Lee e Oli Barrett sobre a China no YouTube. Pai e filho visitam hotéis em locais exóticos, viajam a aldeias remotas, saboreiam iguarias em mercados muito movimentados e passam por limpezas de ouvido realizadas com métodos tradicionais chineses.

"Hoje estamos no subúrbio de Xangai, no hotel mais incrível em que já nos hospedamos", diz Oli em um dos vídeos, logo antes que uma câmera montada em um "drone" para filmá-los se eleva para revelar o resort de luxo construído no local de uma imensa pedreira abandonada.

Os Barrett são parte de uma safra de novas personalidade de mídia social que pintam retratos alegres da vida como estrangeiros na China –e também ajudam a rebater as críticas ao modo de governo autoritário de Pequim, às políticas das autoridades com relação a minorias étnicas e à sua condução da crise do coronavírus.

O dirigente chinês Xi Jinping, ao centro, em cerimônia em Pequim - Li Xueren - 14.dez.2021/Xinhua

Os vídeos têm um jeitão caseiro e casual. Mas do outro lado das câmeras há em muitos casos um grande aparato de organizadores governamentais, mídia controlada pelo Estado e outras formas oficiais de amplificação –tudo isso parte das tentativas cada vez mais amplas do governo chinês de difundir mensagens favoráveis a Pequim em todo o planeta.

Organizações noticiosas operadas pelo Estado e governos locais organizaram e financiaram as viagens dos influenciadores pró-Pequim, de acordo com documentos do governo e com alguns desses influenciadores. Ofereceram pagamentos aos criadores. Geraram tráfego lucrativo para eles ao compartilhar vídeos com milhões de usuários nas redes sociais.

Com a ajuda dos veículos oficiais de mídia, os criadores são capazes de visitar e filmar partes da China nas quais as autoridades obstruíram o trabalho de reportagem de jornalistas estrangeiros.

A maioria desses youtubers vive na China há anos e diz que seu objetivo é rebater a percepção cada vez mais negativa do Ocidente sobre o país. Eles dizem que quem decide o que aparece em seus vídeos são eles, e não o Partido Comunista chinês.

Mas mesmo que os criadores não se vejam como ferramentas de propaganda, Pequim os usa para esse fim. Diplomatas e representantes chineses mostram os vídeos que eles fazem em entrevistas coletivas e compartilham suas criações em redes sociais. Juntos, seis dos mais populares entre esses influenciadores acumularam mais de 130 milhões de visualizações no YouTube, e têm mais de 1,1 milhão de assinantes.

Vozes estrangeiras simpáticas ao país são parte dos esforços cada vez mais ambiciosos de Pequim para dar forma à conversação entre o planeta e a China. O Partido Comunista recorreu a diplomatas e a veículos estatais de mídia a fim de difundir suas narrativas e sufocar críticas, muitas vezes com a ajuda de verdadeiros exércitos de contas de redes sociais obscuras que amplificam o impacto de suas postagens.

Na prática, Pequim está usando plataformas como o Twitter e o YouTube, cujo uso o governo bloqueia dentro do país para prevenir a difusão descontrolada de informações, como megafones de propaganda no exterior.

"A China é o novo abusador gigante que chegou à rede social do planeta", disse Eric Liu, ex-moderador de conteúdo na mídia social chinesa. "O objetivo não é vencer, mas causar caos e suspeita até que deixe de existir verdade real."

O Estado por trás da câmera

Raz Gal-Or começou a fazer vídeos engraçados quando era universitário em Pequim. Agora, o jovem israelense leva seus milhões de assinantes com ele ao entrevistar tanto pessoas comuns quanto estrangeiros residentes no país sobre suas vidas na China.

Em um vídeo que circulou no segundo trimestre, Gal-Or visitou plantações de algodão em Xinjiang a fim de rebater as acusações de que eram mantidas por meio de trabalho forçado.

"É tudo completamente normal aqui", ele disse, depois de comer kebabs com alguns trabalhadores. "As pessoas são bacanas e só estão fazendo seu trabalho e vivendo suas vidas".

Os vídeos dele não mencionam documentos do governo, depoimentos de testemunhas e visitas de jornalistas que indicam que as autoridades mantinham milhares de muçulmanos da área de Xinjiang detidos em campos de reeducação.

E também omitem os elos de negócios entre o influenciador e sua família e o Estado chinês.

O presidente da YChina, a companhia de vídeos de Gal-Or é seu pai, Amir, um investidor cujo fundo conta com apoio do China Development Bank, um banco estatal chinês, afirma a companhia de Amir Gal-Or em seu site.

A YChina tem dois veículos estatais de mídia como clientes, de acordo com o site da Innonation, empresa fundada por Amir Gal-Or. A Innonation administra espaços compartilhados de trabalho e hospeda os escritórios da YChina em Pequim.

Em emails enviados ao The New York Times, Raz Gal-Or disse que a YChina não tem "contratos de negócios" com agências estatais de notícias e que o site da Innonation estava "incorreto". Ele diz que não recebeu pagamentos ou orientações de entidades oficiais em sua visita a Xinjiang.

Gal-Or disse que sua série de vídeos sobre Xinjiang era sobre "as vidas, o bem-estar e os sonhos das pessoas".

"Aqueles que os percebem como políticos certamente têm suas próprias agendas", ele acrescentou.

'Fazendo um trabalho'

Outros criadores reconhecem que aceitaram apoio financeiro de entidades estatais, ainda que declarem que isso não os torna propagandistas de Pequim.

Kirk Apesland, um canadense que vive na China, opera um canal de YouTube chamado Gweilo 60 ("gweilo" é uma gíria cantonesa para "estrangeiro"). Ele rejeita as notícias sobre repressão em Xinjiang e menciona suas experiências pessoais agradáveis para contestar a ideia de que o povo chinês esteja sendo oprimido.

Depois que o The New York Times contatou Apesland, ele postou um vídeo intitulado "New York Times vs. Gweilo 60". No vídeo, ele admite aceitar estadias gratuitas em hotéis e pagamentos de governos municipais e provinciais. E compara o seu papel ao de um promotor do turismo local.

"Se recebo pagamento pelo que faço? É claro", ele disse. "Estou fazendo um trabalho. Produzindo vídeos que atingem centenas de milhares de pessoas".

De acordo com um documento que foi destaque em um relatório recente do Instituto Australiano de Política Estratégica, a autoridade reguladora da internet da China pagou cerca de US$ 30 mil (R$ 170 mil, na cotação atual) a uma empresa de mídia como parte da campanha "um encontro com a China", que recorria a "celebridades estrangeiras da internet" a fim de promover o sucesso do governo em diminuir a pobreza.

O instituto de pesquisa, financiado pelos governos da Austrália e dos Estados Unidos e por empresas que incluem fornecedores de equipamentos às forças armadas, já publicou diversos relatórios sobre as políticas coercivas que a China emprega em Xinjiang.

Quando os youtubers viajam com despesas pagas pelo Estado, organizadores oficiais determinam o que eles veem e não veem. Não muito tempo atrás, Lee Barrett, um influenciador chamado Matt Galat e dois criadores de vídeos do México fizeram um debate em "livestream" sobre uma viagem que realizaram à cidade de Xi’an, organizada pela China Radio International, uma emissora estatal.

Os organizadores pediram a Galat que fizesse elogios a um lugar que ainda não tinha visitado, ele disse, durante o debate. E ele recusou.

Em outra parte da viagem, Galat ficou frustrado por uma visita a uma montanha sagrada ter sido excluída do itinerário.

"Eles precisavam encaixar mais visitas de propaganda", ele disse.

Galat mais tarde removeu a gravação dessa discussão de seu canal. E se recusou a dizer o motivo.

Como obter likes e influenciar pessoas

Não está claro que volume de renda os criadores podem estar gerando com esse tipo de trabalho. Mas, além do dinheiro, as entidades governamentais chinesas ofereceram algo que pode ser igualmente valioso para uma personalidade de mídia social: tráfego digital.

O YouTube usa sua receita publicitária para remunerar influenciadores com base no número de pessoas que assistam aos seus vídeos. Esses espectadores também podem ajudar um influenciador a fechar contratos de patrocínio com grandes marcas, o que aconteceu no caso de diversos dos youtubers pró-chineses.

Gal-Or postou seu vídeo sobre as fazendas de algodão de Xinjiang no YouTube em 8 de abril, pouco depois de que a Nike, H&M e outras marcas começaram a ser atacadas na China por expressarem preocupação sobre as denúncias de trabalhos forçados.

Em poucos dias, seu vídeo, com legendas em italiano, tinha sido postado na página oficial de Facebook da embaixada chinesa na Itália, que tem quase 180 mil seguidores.

Nas semanas que se seguiram, o vídeo, acompanhado por outros clipes da visita de Gal-Or a Xinjiang, havia sido compartilhado por pelo menos 35 contas operadas por embaixadas e veículos estatais de notícia chineses. No total, essas contas têm cerca de 400 milhões de seguidores.

No Twitter, o vídeo de Gal-Or foi compartilhado por muitas contas com personas digitais tênues a ponto de despertar suspeitas, de acordo com Darren Linvill, da Universidade Clemson, que pesquisa sobre desinformação na rede social. Isso costuma ser um sinal característico de uma operação coordenada.

Joshua Lam e Libby Lange, estudantes de pós-graduação e pesquisadores na Universidade Yale, analisaram uma amostra de quase 290 mil tuites que mencionavam Xinjiang, no primeiro semestre de 2021. Constataram que seis dos dez vídeos do YouTube mais compartilhados nesses tuites eram de influenciadores pró-China.

Sem arrependimentos

Galat era um dos mais populares dos YouTubers pró-Pequim quando deixou a China, este ano, para conduzir seu canal a novos destinos. Ele agora está documentando suas viagens pelos Estados Unidos.

Em uma entrevista, Galat disse que não tem arrependimentos quanto aos seus vídeos sobre a China.

Antes da pandemia, Galat, natural de Detroit, morava na cidade chinesa de Ningbo e tinha criado uma audiência no YouTube para seus vídeos improvisados de viagem.

Quando a China saiu do pior período do surto inicial do coronavírus, ele começou a receber convites para viagens, da parte de governos locais e veículos de notícias estatais.

Na época, a China estava tentando desviar as críticas ocidentais sobre a resposta do país à pandemia. Galat disse que essas críticas também o incomodavam.

Os vídeos dele no YouTube começaram a ganhar um tom mais político. Ele falou sobre a possibilidade de que o vírus pudesse ter vindo dos Estados Unidos, e conduziu um debate sobre a campanha ocidental contra a gigante da tecnologia chinesa Huawei.

"As pessoas gostam de ter sentimentos dramáticos e agressivos com relação às coisas, e boa parte daquele conteúdo era mais popular do que, digamos, meus vídeos normais de viagens", disse Galat.

Quando este ano chegou, o canal de Galat já tinha mais de 100 mil assinantes. Ele reconheceu que foi o apoio da mídia estatal da China que ajudou seu canal a crescer. À medida que suas viagens com a mídia estatal se alongavam, as empresas lhe pagavam mais pelo seu tempo, disse. Galat se recusou a falar sobre valores.

Na metade deste ano, ele visitou Xinjiang, em uma viagem planejada pela rede estatal de TV chinesa CGTN.

"Para aqueles que desejam comparar a China à Alemanha nazista, eis uma observação", ele disse em um vídeo gravado em um museu sobre a cultura dos uigures, uma das minorias étnicas da região de Xinjiang. "Você acha que existiam museus sobre a cultura judaica na Alemanha logo antes da Segunda Guerra Mundial?"

O número de visualizações dos vídeos de Galat no YouTube caiu depois que ele saiu da China. Isso não o incomoda, disse. No futuro, seu canal provavelmente não será tão político.

"Não me sinto completamente confortável na posição de debatedor político de questões importantes", disse Galat.

Tradução de Paulo Migliacci

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