A próxima 'Succession' pode ser escrita pelo ChatGPT?

Sindicatos de escritores e atores buscam limites para a inteligência artificial

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Noam Scheiber John Koblin
The New York Times

Quando o sindicato que representa os roteiristas de Hollywood apresentou sua lista de objetivos para a negociação de contratos com os estúdios, nesta primavera, incluiu termos conhecidos sobre remuneração, que os roteiristas dizem ter estagnado ou caído em meio à explosão de novos filmes e séries.

Mas lá embaixo o documento acrescentou uma clara reviravolta em 2023. Numa seção intitulada "Padrões profissionais e proteção no emprego de escritores", o sindicato escreveu que pretendia "regulamentar o uso de material produzido com inteligência artificial ou tecnologias semelhantes".

À mistura de programadores de computador, redatores de marketing, consultores de viagens, advogados e ilustradores de quadrinhos repentinamente alarmados com a força crescente da IA generativa, podemos agora acrescentar roteiristas.

Jeremy Strong, Sarah Snook e Kieran Culkin em cena da quarta temporada de 'Succession', da HBO - Divulgação/HBO

"Não está fora de questão que antes de 2026, que será a próxima vez que negociaremos com essas empresas, elas possam simplesmente dizer: 'Quer saber, estamos bem assim'", disse Mike Schur, criador de "The Good Place" e cocriador de "Parks and Recreation".

"Não precisamos de você", ele imagina ouvir do outro lado. "Temos um monte de IAs criando entretenimento que as pessoas estão aprovando."

Em suas tentativas de resistir, os escritores têm o que muitos outros trabalhadores de colarinho branco não têm: um sindicato.

Schur atua no comitê de negociação do Sindicato dos Escritores da América e busca evitar uma greve antes que seu contrato expire nesta segunda-feira (1°). Ele afirma que o sindicato espera "traçar uma linha na areia agora e dizer: 'Os escritores são seres humanos'".

Mas os sindicatos, dizem os historiadores, geralmente falham em controlar as novas tecnologias que permitem a automação ou a substituição de mão de obra qualificada por outra menos qualificada. "Fico perdido ao pensar num sindicato que conseguiu ser corajoso e fazer isso", disse Jason Resnikoff, professor assistente de história na Universidade de Groningen, na Holanda, que estuda trabalho e automação.

O destino dos roteiristas, atores e diretores que negociam novos contratos este ano poderá dizer muito sobre se o padrão continuará na era da inteligência artificial.

Em dezembro, a Apple lançou um serviço que permite que editoras de livros usem narradores de IA que soam como humanos. A inovação poderá substituir centenas de dubladores que ganham a vida interpretando audiolivros. O site da empresa diz que o serviço beneficiará autores independentes e pequenas editoras.

"Eu sei que alguém sempre tem que chegar lá primeiro, alguma empresa", disse Chris Ciulla, que estima ter ganhado de US$ 100 mil a US$ 130 mil por ano nos últimos cinco anos, narrando livros sob contratos sindicais. "Mas que as pessoas não entendam como isso pode afetar o narrador que batalha por aí é decepcionante."

Outros atores temem que os estúdios usem a IA para replicar suas vozes, cortando-os do processo. "Já vimos isso acontecer –já surgiram sites com bancos de dados de vozes de personagens de videogames e animações", disse a atriz Linsay Rousseau, que ganha a vida trabalhando com a voz.

Os atores apontam que os estúdios já estão usando captura de movimento ou captura de atuação para replicar os movimentos ou as expressões faciais dos artistas. O sucesso "Pantera Negra", de 2018, contou com essa tecnologia para cenas que retratavam centenas de pessoas em penhascos, imitando os movimentos dos dançarinos contratados para atuar no filme.

Alguns atores temem que versões mais recentes da tecnologia permitam que os estúdios efetivamente roubem seus movimentos, "criando uma nova performance no estilo de um mestre de wushu ou de karatê e usando o estilo dessa pessoa sem consentimento", disse Zeke Alton, dublador e ator de cinema que faz parte do conselho de seu sindicato local, SAG-AFTRA, em Los Angeles.

E os escritores de Hollywood estão cada vez mais ansiosos à medida que o ChatGPT se tornou adepto de imitar o estilo de autores prolíficos.

"No início das conversas com o sindicato, discutimos o que chamo de problema Nora Ephron", disse John August, membro do conselho do Sindicato de Escritores. "Que é basicamente: o que acontece se você alimentar todos os scripts de Nora Ephron em um sistema e gerar uma IA que possa criar um script que pareça de Nora Ephron?"

August, roteirista de filmes como "As Panteras" e "Charlie e a Fábrica de Chocolate", disse que, embora a inteligência artificial tenha ficado em segundo plano em relação à remuneração na negociação do sindicato, este fez duas exigências importantes sobre o assunto automação.

Ele quer garantir que nenhum material literário –roteiros, tratamentos, esboços ou mesmo cenas definidas– possa ser escrito ou reescrito por chatbots. "Um caso terrível do tipo, 'Ah, eu li seus roteiros, não gostei da cena, então mandei o ChatGPT reescrevê-la’ –esse é o cenário de pesadelo", disse August.

O sindicato também quer garantir que os estúdios não possam usar chatbots para gerar material original adaptado para a tela por humanos, como poderiam adaptar um romance ou uma reportagem de revista.

O sindicato dos atores SAG-AFTRA diz que mais de seus membros estão assinando contratos para trabalhos individuais, em que os estúdios parecem reivindicar o direito de usar suas vozes para gerar novas apresentações.

Um contrato recente da Netflix procurou conceder à empresa o uso gratuito da simulação da voz de um ator "por todas as tecnologias e processos hoje conhecidos ou desenvolvidos futuramente, em todo o universo e em perpetuidade".

A Netflix disse que o texto está em vigor há vários anos e permite que a empresa faça a voz de um ator ficar mais parecida com a voz de outro em caso de mudança de elenco entre as temporadas de uma obra de animação.

O sindicato disse que seus membros não estão vinculados a cláusulas contratuais que permitiriam a um produtor simular novas atuações sem remunerar os atores, embora às vezes tenha intervindo para retirá-las dos contratos.

Duncan Crabtree-Ireland, diretor executivo da SAG-AFTRA, disse que tais contratos representam um risco muito maior para atores não sindicalizados, que podem se tornar cúmplices involuntários de sua própria obsolescência. "Basta uma ou algumas instâncias de abrir mão de seus direitos vitalícios para realmente ter um impacto negativo em suas perspectivas de carreira", disse ele.

A Aliança de Produtores de Filmes e Televisão, que negocia com os vários sindicatos que representam roteiristas, atores e diretores em nome dos principais estúdios de Hollywood, se recusou a comentar.

Quando os profissionais evitam a obsolescência pelas mãos da tecnologia, o resultado muitas vezes reflete a posição e o prestígio de sua ocupação.

Esse parece ter sido o caso até certo ponto com os pilotos de avião, cujas tripulações caíram para dois na maioria dos voos comerciais domésticos no final dos anos 1990, mas têm se mantido praticamente niveladas desde então, mesmo quando a tecnologia automatizada se tornou muito mais sofisticada e a indústria avaliou novas reduções.

"A rede de segurança que você tem quando está muito acima do solo –aquela que o impede de atingir o solo– são dois pilotos altamente treinados, experientes e descansados", disse o capitão Dennis Tajer, porta-voz da Associação de Pilotos Aliados, que representa os pilotos da American Airlines. Até hoje, voos de mais de nove horas exigem pelo menos três pilotos.

A substituição de certos médicos por inteligência artificial, que alguns especialistas previam ser iminente em áreas como a radiologia, também não se concretizou. Isso se deve em parte aos limites da tecnologia e à estatura dos médicos, que se inseriram em conversas de alto risco sobre a segurança e a implantação da IA. O Colégio Americano de Radiologia criou um Instituto de Ciência de Dados parcialmente para esse fim há vários anos.

Se os roteiristas terão sucesso semelhante, dependerá, pelo menos em parte, da existência de limites inerentes às máquinas que pretendem fazer seu trabalho. Alguns escritores e atores falam de um chamado "vale misterioso" do qual os algoritmos podem nunca escapar completamente.

"Os artistas olham para tudo o que já foi criado e encontram um lampejo de novidade", disse Javier Grillo-Marxuach, escritor e produtor de "Lost" e "Dark Crystal: Age of Resistance". "O que a máquina está fazendo é recombinar."

Por mais sofisticados que sejam os algoritmos, o destino de escritores e atores também dependerá de quão bem eles protejam sua posição.

Os sindicatos estão pressionando seu caso. August diz que cabe ao Sindicato de Escritores e não ao estúdio determinar quem recebe o crédito de autor em um projeto, e que o sindicato protegerá esse rito zelosamente. "Queremos garantir que uma IA nunca seja um dos autores nos créditos de um projeto", disse ele.

Os sindicatos também têm cartas jurídicas para jogar, disse Crabtree-Ireland, da SAG-AFTRA, como o pronunciamento do Departamento de Direitos Autorais dos EUA em março de que o conteúdo criado inteiramente por algoritmo não é elegível para proteção de direitos autorais. É mais difícil monetizar uma produção se não houver impedimento legal para copiá-la.

Talvez mais importante, disse ele, seja o que você pode chamar de fator US Weekly –a tendência do público a se interessar tanto pela pessoa por trás do papel quanto pela atuação. Os fãs querem apreciar as opções de moda dos atores e saber quem eles estão namorando.

"Se você olhar para a cultura em geral, o público geralmente está interessado na vida real de nossos membros", disse Crabtree-Ireland. "A IA não está em condições de substituir elementos-chave disso."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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