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20/09/2011 - 07h51

Escaneando 2,4 bilhões de olhos, Índia tenta reduzir desigualdade

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LYDIA POLGREEN
DO "NEW YORK TIMES", EM KALDARI, ÍNDIA

Por toda esta vasta e caótica nação, funcionários estão criando o que será o maior banco de dados de identificação biométrica do mundo, reunindo 1,2 bilhão de indivíduos. Mais radical do que seu tamanho, no entanto, é a sua ambição: reduzir a desigualdade que corrói a ascensão econômica indiana, ao vincular digitalmente cada pessoa do país ao avassalador crescimento nacional.

O programa permitirá que os cidadãos recebam benefícios sociais, abram uma conta bancária ou obtenham um telefone celular em aldeias remotas, algo que ainda é impossível para muita gente hoje em dia.

Há décadas a gigantesca e ineficaz burocracia indiana gasta bilhões de dólares para tentar tirar os pobres da miséria. Mas grande parte do dinheiro é desperdiçada. Agora, usando a mesma tecnologia poderosa que transformou a economia privada do país, o governo indiano criou uma pequena "start-up" para tentar transformar --ou contornar-- a paralisante burocracia legada pelo passado socialista do país.

Ruth Fremson/The New York Times
A migrante Vijaykanti tem suas íris escaneadas para receber um cartão de identidade nacional na Índia
A migrante Vijaykanti tem suas íris escaneadas para receber um cartão de identidade nacional na Índia

"O que estamos criando é tão importante quanto uma estrada", disse Nandan Nilekani, bilionário magnata do setor de software, cooptado pelo governo para criar o banco de dados. "É uma estrada que de certa forma liga cada indivíduo ao Estado."

Nesse programa, cada cidadão recebe um RG de 12 dígitos depois de ter as íris e impressões digitais registradas digitalmente. Trata-se de uma solução engenhosa para um problema particularmente complicado.

A maioria dos cidadãos mais pobres da Índia, como os daqui de Kaldari, vive atada a um sistema de identificação baseado nas aldeias, o que torna a migração, crucial para qualquer economia em crescimento, muito mais difícil.

O projeto também pode reduzir a corrupção. Com a transmissão eletrônica de dados e a verificação deles por muitos órgãos governamentais, fica muito mais difícil para funcionários desonestos se apropriarem dos benefícios dirigidos aos cidadãos.

Com o novo sistema, chamado Aadhaar ("Fundação"), qualquer indiano poderá ter sua identidade verificada em oito segundos em qualquer lugar do país, com o auxílio de equipamentos portáteis e baratos, ligados à rede de telefonia celular.

Ele ajudará também na construção de uma verdadeira cidadania, numa sociedade onde a identidade é quase sempre mediada por um grupo --casta, parentesco ou religião. O Aadhaar deve, pela primeira vez, identificar cada indiano como um indivíduo.

Embora seja a segunda economia que mais cresce no mundo, a Índia tem mais de 400 milhões de cidadãos na pobreza. Quase metade das crianças menores de 5 anos está abaixo do peso ideal.

Os custosos sistemas de bem-estar social da Índia são tão ineficientes que há armazéns abarrotados de grãos apodrecendo, apesar dos índices de desnutrição que rivalizam com os da África. Muitos alimentos são desviados para o mercado privado antes de chegarem aos famintos.

Os sistemas atuais são incapazes de conectar as necessidades mais básicas dos cidadãos à ajuda que está disponível. Com a tecnologia, dizem partidários do projeto, as pessoas poderiam interagir com o Estado sem depender das autoridades locais que controlam os serviços governamentais.

"Não é possível melhorar o ser humano", disse Ram Sevak Sharma, diretor-geral do programa de identificação. "Mas pode-se certamente melhorar os sistemas. E os mesmos seres humanos imperfeitos, com um sistema melhor, serão capazes de produzir resultados maiores e melhores."

Ruth Fremson/The New York Times
As impressões digitais de Vijaykanti também devem ser recolhidas para ela ser registrada no sistema Aadhaar
As impressões digitais de Vijaykanti também devem ser recolhidas para ela ser registrada no sistema Aadhaar

O governo criou uma instituição híbrida incomum: uma pequena equipe de burocratas da elite, colaborando com veteranos de "start-ups" do Vale do Silício e com as mais respeitadas empresas de tecnologia de Bangalore.

O projeto empregará apenas algumas centenas de pessoas, e companhias privadas irão convocar os cidadãos.

O custo de cada RG é de cerca de US$ 3, e mais de 30 milhões de pessoas já o receberam. O processo é gratuito e voluntário.

Esquerdistas temem que o banco de dados corroa o papel do Estado no auxílio aos pobres. Por enquanto não houve objeção de burocratas, políticos e empresários poderosos e corruptos, mas isso quase certamente irá acontecer quando os empecilhos ao seu "modus operandi" ficarem evidentes.

Nilekani, o responsável pelo projeto, foi cofundador da mais famosa "start-up" indiana. Em 1981, ele reuniu um capital de 10 mil rupias (cerca de US$ 1.100) com seis colegas para criar a Infosys, que hoje vale US$ 30 bilhões e emprega mais de 130 mil pessoas no mundo todo.

Ele deixou a presidência da Infosys para supervisionar a iniciativa. "Eu sou um empreendedor dentro do sistema", explicou. Tal ideia no passado seria simplesmente impensável.

Nilekani, 56, vem de uma época em que quase toda a iniciativa privada na Índia estava sufocada sob a chamada Licença Raj, o antigo sistema que governava a economia fechada da Índia. Isso significava que o empreendedorismo era quase impossível.

Quando o governo decidiu criar o sistema único de identificação, Nilekani soube aproveitar a oportunidade de comandá-lo. Embora com status de ministro, ele ficaria à frente de um órgão público pequeno e aparentemente obscuro.

"Quem não está familiarizado com a tecnologia não entende como isso é grande", disse um funcionário do projeto.

Não surpreende, portanto, que algumas pessoas vejam a ideia de centralizar a identificação dos cidadãos como um pesadelo distópico. Defensores da privacidade receiam que o governo use o programa para rastrear os cidadãos. A Índia não tem leis robustas para a proteção da privacidade. Por isso, o banco de dados foi concebido para conter o mínimo de informações --apenas nome, data de nascimento, sexo e endereço.

Quando alguém for confirmar a identidade de uma pessoa usando o RG, o banco de dados fornecerá apenas uma resposta do tipo sim ou não.

Muitos críticos influentes argumentam que a iniciativa é cara --US$ 326 milhões foram reservados para ela no próximo ano fiscal, e o projeto deve levar uma década para ser concluído-- e desnecessária, porque há formas mais fáceis de combater a corrupção. O Estado de Chhattisgarh, no centro da Índia, reduziu drasticamente o desperdício e as fraudes na distribuição de grãos subsidiados graças a cartões inteligentes.

Mas o projeto recebe um grau de apoio incomum por parte dos altos escalões do governo.

Ruth Fremson/The New York Times
Cartões de identidade temporários são organizados em abrigo de sem-teto em Nova Déli, na Índia
Cartões de identidade temporários são organizados em abrigo de sem-teto em Nova Déli, na Índia

À sombra de um viaduto em Nova Déli, um grupo de sem-teto fazia fila à espera da identificação. O puxador de riquixá Mohammed Jalil não tem conta bancária, o que dificulta qualquer poupança. Gente pobre como ele tem direito a subsídios para alimentação, moradia e saúde, mas ele não tem acesso a nada disso. Jalil espera que o Aadhaar lhe permita abrir uma conta bancária. Ele poderia também obter carteira de motorista e celular.

"Isso vai me dar uma identidade", disse. "Vai mostrar que eu sou um ser humano, que estou vivo, que vivo neste planeta. Vai provar que sou um indiano."

 

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