Capital da Bósnia guarda livro misterioso da Páscoa

Hagadah, sobre fuga dos judeus do Egito, fica em caixa no Museu Nacional

A figura mostra duas ilustrações que estão no Hagadah. As figuras humanas têm traços leves de desenho, tendo sempre o rosto de frente para o leitor. A superior mostra Moisés de pé, vestindo uma túnica, com os braços erguidos enquanto as demais pessoas à sua frente se agacham. No inferior, a mesma figura abençoa um homem, Josué, em cima de um monte e enquanto é observado por outras pessoas
Bênção de Moisés ao povo de Israel antes de sua morte - Reprodução
Leão Serva
São Paulo

Há milhares de anos, na Páscoa, também chamada Pessach, os hebreus leem para suas crianças as histórias sagradas da fuga do Egito, como narradas no livro chamado “Hagadah”. 

Essa cena se repetirá no próximo fim de semana, em respeito ao que manda a Bíblia. Em um canto conflagrado do planeta, encontra-se o exemplar mais misterioso desse livro especialmente escrito para as crianças, o “Hagadah de Sarajevo”, guardado em uma caixa de vidro blindado no Museu Nacional da capital da Bósnia.

Os cuidados extremos com sua proteção se devem ao fato de Sarajevo ter sido epicentro de uma guerra sangrenta, entre 1992 e 1995, quando havia temor de que o volume pudesse ser destruído. O livro sobreviveu à guerra em um bunker do Banco Central, resistente às bombas sérvias.

Também poderia ser roubado, como tentaram fazer soldados nazistas, que ocuparam a cidade na Segunda Guerra Mundial, e gatunos em busca de objetos valiosos, no começo da guerra civil, em 1992. Nas duas oportunidades, o livro foi salvo por funcionários da Biblioteca Nacional da Bósnia.

Agora que o país está em paz, o “Hagadah de Sarajevo” é mantido como a relíquia mais valiosa do museu: foi avaliado em US$ 7 milhões em 1992 (cerca de R$ 24 milhões hoje). E serve como uma boa razão para turistas de vários cantos do mundo visitarem a capital da Bósnia.

Produzido durante a Idade Média em algum lugar da atual Espanha, é considerado uma relíquia dos judeus ibéricos (os sefarditas). 

A obra tem características únicas: combina aspectos da tradição religiosa hebraica com elementos da cultura católica. A principal marca dessa mistura são as iluminuras e ilustrações, comuns nos manuscritos cristãos e inexistentes em obras judaicas.

O livro deve ter sido produzido para uma rica família do período medieval. 

Em 1492, os exércitos reunidos pelos “reis católicos” de Aragão e Castela dominaram o território da atual Espanha e decretaram a expulsão dos judeus (que habitavam a península desde antes de Cristo nascer e tinham até uma língua própria, o ladino, parecida com o espanhol).

A maior parte dos expulsos exilou-se em áreas dominadas pelo império turco, incluindo Sarajevo. O “Hagadah” permaneceu desconhecido até o final do século 19, quando um homem de família judaica, precisando de dinheiro, procurou o Museu Nacional para vendê-lo.

A história do livro foi contada pela escritora australiana Geraldine Brooks em artigos de jornais e, de forma romanceada, em “People of the Book” (no Brasil, “As Memórias do Livro”, editora Ediouro, 2008), que mescla a trajetória real com personagens de ficção que se dedicam a estudá-lo.

CINEMA 

Se Sarajevo para você ainda é sinônimo de guerra, pode mudar seus conceitos. Os anos 1990 já são história, hoje quem bomba é o turismo.

Estações de esqui e deliciosos cafés, montanhas cobertas de florestas, um centro histórico que preserva as construções medievais turcas e uma intensa vida universitária atraem visitantes à cidade de 400 mil habitantes.

Cena noturna: uma ponte sobre um rio com um prédio iluminado ao fundo
A Biblioteca Nacional, em Sarajevo, na Bósnia, que foi reconstruída depois de ter sido bombardeada na guerra, em 1992 - Mustafa Oztürk/Anadolu/Agency/AFP

Você já encontrou Penélope Cruz andando sozinha por aí? Eu topei com ela entrando no hotel Holiday Inn (que durante os anos de guerra servia de abrigo a jornalistas de todo o planeta).

É frequente a presença de equipes de cinema produzindo na cidade, e todos os verões seu festival de cinema atrai estrelas internacionais para lançamentos (neste ano, será de 10 a 17 de agosto).

Os sinais da guerra ainda são visíveis em prédios marcados de bala ou terrenos cobertos de túmulos ou mesmo nas construções históricas recentemente reconstruídas, como a Biblioteca Nacional. 

Há até um novo Museu do Túnel de Sarajevo, que mantém intacta a entrada e algumas dezenas de metros da passagem subterrânea construída durante o longo cerco das forças sérvias, que permitiu o abastecimento de bens e a entrada e saída de autoridades locais, apesar do constante bombardeio.

Além dos atrativos próprios, o turismo em Sarajevo se beneficia da proximidade com um dos destinos mais quentes da Europa, o litoral da Croácia. A capital da Bósnia está a apenas quatro horas de carro de Split, de onde saem barcos para as badaladas ilhas da Dalmácia, como Hvar e Vis, e a cidade de Dubrovnik, chamada de “pérola do Adriático” pela cor branca do mármore com que foi construída até o século 16.

A persistente fama da guerra tem efeito positivo para o turista: procura menor reduz preços de estadia e comida.

Mais uma boa razão para ver de perto as placas onde, durante a guerra, ironicamente, escreviam: “Welcome to Sarajevo”.

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