Cidade mais literária do mundo, Paris é para os andarilhos

O romancista Milton Hatoum lembra aqui do tempo em que viveu na cidade

Arco do Triunfo, na ponta da avenida Champs-Élysées, em Paris 

Arco do Triunfo, na ponta da avenida Champs-Élysées, em Paris  Hiroyuki Matsumoto/Getty Images

Milton Hatoum
São Paulo

Em dezembro de 1980, ao desembarcar em Paris, um sonho da juventude prevaleceu sobre os rigores e a penitência do inverno. 

O céu e as fachadas dos edifícios eram cinzentos, as roupas das pessoas, escuras, e a tarde parecia antecipar a noite. Essa quase escuridão vespertina também me emocionou.

Paris era o centro simbólico de alguns dos meus romances preferidos. Mas antes dessas leituras, era a cidade evocada pela minha professora de francês em Manaus, nas lições com mapas, livros e postais parisienses.

Além disso, eu queria ser escritor, e não arquiteto; pensava, sem ingenuidade, que Paris era o melhor lugar do mundo para escrever e ler, longe da brutalidade política brasileira, que ameaça voltar.

Foi um lance de sorte: a amiga de uns amigos desocupara um quarto no Marais, um bairro medieval poupado pelo plano de modernização do barão Haussmann. 

Morei por um bom tempo nesse encantador vilarejo parisiense, com seus palácios, abadias, templos religiosos e ruelas muito antigas. E, claro, a Place des Vosges, entre tantas outras praças belíssimas. 

Não era o “quartier” chique e pretensioso de hoje, e sim um bairro mais popular, cheio de ateliês de artistas, pequenas lojas e oficinas de objetos de couro.

Saía dos cursos de Jussieu e da Sorbonne, pegava o metrô ou o ônibus e saltava em qualquer estação. Às vezes ia até os subúrbios, ricos e pobres, e circulava por lá.

Ou então percorria a margem do rio Sena, folheava livros na tenda de um bouquiniste [vendedor de livros usados], atravessava uma ponte, descobria outros lugares. 

O Jardin des Plantes, o Bois de Boulogne, o Parque Montsouris, La Butte-aux-Cailles e as livrarias de Montparnasse e do Quartier Latin eram os destinos do andarilho.

Paris é a cidade do passeante: você se surpreende com uma passagem, um beco, um pequeno parque ou praça, um museu meio escondido, como o Delacroix, na pracinha de Furstenberg. Àquela época, quase tudo era acessível: museus, cinema, teatro, comida, vinho. Não frequentei restaurantes caros: diante de um deles, me lembrava de uma cena de Proust, em que as pessoas na calçada olham o interior de um restaurante fino como se fosse um aquário.

Em mais de três anos, não conheci tudo. Mas, bem ou mal, escrevi uma parte do meu primeiro romance em pequenos estúdios e quartos nas ruas du Temple, d´Aligre, Daguerre, de Tolbiac, de la Goutte d´Or, na avenida Général Leclerc. 

O espaço exíguo ou precário era o de menos. Queria a solidão de quem lê e escreve na cidade mais literária do mundo. E isso Paris me deu no fim da juventude: tempo de fervor e êxtase, talvez o menos infeliz da minha vida.

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Milton Hatoum

É autor dos romances "A Noite da Espera", "Dois Irmãos" e "Cinzas do Norte", entre outros. Foi professor de literatura francesa da Universidade do Amazonas (1984-1999) e professor visitante da Universidade da Califórnia (Berkeley/1996). Sua obra foi traduzida em 12 línguas e publicada em 14 países

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