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Escritor Lourenço Diaféria narrou sua viagem a Amsterdã em 1975

Colunista escreveu reportagem de capa de Turismo quando cidade completou 700 anos

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São Paulo

Em 1975, a cidade de Amsterdã completou 700 anos. Para marcar, o caderno de Turismo da Folha  publicou uma edição dedicada à Holanda. O texto de capa, no dia 7 de março daquele ano, foi assinado pelo escritor e jornalista Lourenço Diaféria (1933-2008), que viajou para a cidade.

Diaféria, que começou a sua carreira jornalística na "Folha da Manhã", foi preso pela ditadura militar em setembro 1977, após a publicação do texto "Herói. Morto. Nós", sobre bombeiro que salvara a vida de um garoto num poço de ariranhas no zoológico de Brasília e o comparava ao duque de Caxias. E falava da estátua de Caxias, em São Paulo: "O povo está cansado de estátuas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal".

Capa do caderno Turismo de 7 de março de 1975
Capa do caderno Turismo de 7 de março de 1975 - Gabriel Cabral/Folhapress

Leio o texto:

 

Amsterdã, 700 anos

LOURENÇO DIAFÉRIA
ENVIADO ESPECIAL 

O mais antigo documento relacionado com Amsterdã é o manuscrito, autenticado por um sinete hoje corroído pelo tempo, pelo qual Floris, no domingo antes da festa dos apóstolos Simão e Judas Tadeu, concedeu à cidade o privilégio de franquias fiscais e aduaneiras no dia 27 de outubro de 1275.

A data é hoje oficialmente aceita como da fundação da cidade, de modo que Amsterdã está comemorando este ano sete séculos de existência, com um dos mais completos programas turísticos, culturais e artísticos, rigorosamente preparado para atrair e satisfazer visitantes do mundo inteiro.

Na memória dos tempos, Amsterdã se originou de pequena vila de pescadores, que retiravam das águas não apenas o seu sustento como também os seus problemas.

A região, mais baixa que o nível do mar, era constantemente devastada pelas inundações.

A luta pela sobrevivência fez dos primeiros habitantes homens unidos pela solidariedade, que perdurou posteriormente entre os pequenos artesãos que ali se instalaram.

Retrato do escritor e jornalista Lourenço Diaferia, em 1978
Retrato do escritor e jornalista Lourenço Diaferia, em 1978 - Folhapress

Eles se adaptaram à natureza e procuraram domá-la. Com um notável sistema de represamento conseguiram transformar a região inóspita num centro de pleno florescimento econômico, domesticando as águas, que hoje correm dóceis no rio Dam --o verdadeiro coração da cidade e o manancial que alimenta as centenas de canais que cortam, enfeitam e caracterizam Amsterdã.

Cidade cosmopolita, capital dos Países Baixos e ponto de convergência de gentes de todos os destinos e procedências, Amsterdã possui as surpresas de um caleidoscópio em sua geografia urbana: desde os balouçantes barcos-casas (com luz elétrica, água encanada, telefone e vasos com plantas) ancorados às margens de canais --e cedidos por trezentos florins anuais a jovens cabeludos que chegam mochilas coloridas e cucas mais ou menos fundidas-- até os vetustos casarões seiscentistas, com pátios de pedras, que parecem cenários de filmes de cavaleiros e donzelas.

Convivendo com o passado e o exótico, ergue-se a arquitetura moderna dos ventilados e funcionais conjuntos de habitações e escritórios, os novos e amplos hotéis, e desenham-se os gramados verdejantes que se perdem sob o arvoredo. Há sempre um lugar reservado para o sagrado respeito pela vegetação, para o pescador que enfrenta o vento da manhã nos lagos que bordejam avenidas asfaltadas, para a mulher de cabelos brancos que pedala uma das quinhentas mil bicicletas da cidade, para os rapazes de calções que fazem ginástica nos parques abertos, para as crianças de faces rosadas que correm sob a chuva atrás da bola em campos de futebol sem buracos e sem morrinhos e onde a grama nasce tranquila e forte até no território do goleiro.

Uma cidade onde na feira livre se vendem os queijos, o peixe, a manteiga, revistas, livros e discos de Herman Krebbers e Paul van Vliet, onde os doces parecem sorrir atrás das vitrinas das confeitarias, os sanduíches são fartos e o fabricante de genebra se orgulha de fazer a melhor bebida desde o ano de 1883.

Para o morador desta Amsterdã sete vezes centenária, a cidade é incomparável a qualquer outra capital do mundo.

Incomparável e única.

Para o forasteiro --seja ele turista, homem de negócios ou peregrino-- Amsterdã é o deslumbramento, oportunidades e surpresas.

E para todos, sem exceção, Amsterdã é uma atmosfera.

Com o voo semanal que sai de Viracopos às quartas-feiras às 14h30, com parada no Rio de Janeiro e escala em Monróvia, na Libéria (portanto, já em território africano), a Royal Dutch Airlines leva dezesseis horas para transportar você até Amsterdã.

 

Levando-se em conta a diferença de quatro horas no fuso horário, desembarca-se em Schiphol às 10h05 de quinta-feira, depois de se conhecer a proverbial eficiência da empresa (56 anos de operações e sexto lugar no transporte aéreo internacional) e o atencioso serviço de bordo genuinamente holandês --com exceção da champanha, que é francês.

A apenas 60 minutos de Paris, 55 minutos de Londres, 130 de Roma e 95 de Berlim, Amsterdã é facilmente reconhecível do alto: um jardim verde traçado com régua e esquadro, onde tudo se aproveita e nada se abandona, manchas de terra negra desenhando xadrezes, globos e cilindros de metal, pontes saltando sobre estradas líquidas e sólidas, simétricos modernos contrastando com a assimetria de sobradões e telhados do século 17 --e por fim a pista de Schiphol, onde a bagagem é automaticamente desembaraçada e entregue em menos de 10 minutos, incluindo o tempo que se leva para trocar os cheques de viagem por guilders (florins), a moeda nacional.

Toda a infraestrutura foi montada para permitir aos visitantes conhecer a cidade e, mais importante do que isso, viver sua vida. Os passeios aos canais --um total de cem, com cerca de 100 quilômetros de extensão, percorridos por uma frota de 60 lanchas com janelas e teto panorâmicos-- a visita a famosa torre da igreja do Oeste (o ponto mais alto da cidade), a casa onde viveu Anne Frank, os antiquários, as lojas de diamantes, as 930 pontes e viadutos, os 40 cinemas, as 284 livrarias onde pode-se encontrar aquele livro raro que nunca se atrevera a procurar, o laboratório de aeronáutica espacial, os 382 ateliês de confecções, as 106 butiques com novidades do mundo inteiro, os 2,5 milhões catalogados nas várias bibliotecas das duas universidades, os 24 teatros, tudo isso pode manter o turista ocupado praticamente durante o dia inteiro.

Mas existem, ainda, as noites de Amsterdã.

Antes, porém, as pessoas gostam de conhecer o famoso museu de cera de madame Tussaud e os outros 38 museus ainda mais famosos, com obras de Van Gogh, Rembrandt, Weisenbruch, Jan Toorop, Phillippe Rosseau, Wassily Kandinsky, Camille Corot, Gustave Coubert, Picasso, Marc Chagall, Lúcio Fontana, Gerrit Rietveld --o concreto e o abstrato, o antigo e o moderno reunidos ou separados, como neste Stedelijk Museum, na Paulus Potterstraat, nº 13.

O Stedelijk Museum foi construído em 1895 graças a uma doação da família Eeghen e tem hoje a reputação de um dos maiores centros internacionais da arte de vanguarda, realizando cerca de 30 a 40 exposições anuais. Sua biblioteca possui 10 mil livros especializados, 50 mil catálogos de arte e 168 títulos de revistas referentes à arte moderna, que podem ser consultados.

Para chegar ao Stedelijk basta tomar o ônibus 26, um dos carros das linhas 2, 3 e 16 do “tramway” --espécie de metrô de superfície, em que o passageiro adquire e utiliza seu bilhete sem nenhuma fiscalização (e sem nenhuma fraude), com direito a levar seu cachorrinho de estimação. Desde que o cachorro não morda.

Por sua vez, só o Rijksmuseum, que normalmente recebe por ano mais de 1 milhão de visitantes, reúne uma coleção de perto de 1 milhão de objetos de arte, incluindo 5.000 pinturas, entre as quais o famoso quadro de Rembrandt, “Night Watch”, admirado e conservado como um dos maiores patrimônios artísticos da cidade.

Quatro mil prédios antigos estão relacionados como monumentos históricos, muitos deles restaurados especialmente para as comemorações do sétimo centenário, caso da famosa mansão De Pinto, que pertenceu séculos passados a um abastado comerciante judeu, e a Rondde Lutherse Kerk, construída em 1671 e hoje transformada em hotel e parcialmente cedida este ano à Prefeitura para promoções oficiais.

Centro cultural, centro artístico, centro financeiro e de turismo altamente desenvolvido e organizado, Amsterdã consegue misturar harmoniosamente imagens bucólicas com comércio de diamantes, 532 agências bancárias, 502 agências de seguros, 56 agências de empresas aéreas, 21 centros de compra e venda de moedas antigas, 550 fundos estrangeiros cotados na bolsa de valores, o movimento febril de quarto centro financeiro internacional, um mercado tradicional de selos ao ar livre, 36 escolas de dança, 31 agências matrimoniais (curiosamente ou não, não está fácil casar em Amsterdã), espetáculos eróticos para todos os gostos e temperamentos, 27 saunas, habeas-corpus para legiões de hipis que chegam e partem da Estação Central, policiai masculinos e femininos (circulando aos pares) eficientes e discretos, uma delegacia de polícia com um relógio antigo convivendo na mesma área de jurisdição do “Milkway” e do “Paraiso” (que poderiam ser classificados, a grosso modo, como dois edifícios muito, muito loucos), um povo alegre mas que ri baixo, senhoras de semblante meigo que ensinam o melhor caminho para chegar mais depressa ao centro da cidade, flores nas janelas, nas ruas e nas paredes, tulipas (que são mais do que flores), 118 litros de café por habitante ao ano, 60 litros de cerveja por cabeça no mesmo período, 48 agências teatrais, óperas, concertos sinfônicos filmes livres, quatro ou cinco órgãos de rua --verdadeiros carrilhões ambulantes, espécie de realejos tamanho família-- que sobreviveram às bombas e ao fogo da última guerra, igrejas como a de Santa Inês, onde se canta o Credo em latim e aos domingos há missas solenes, uma torcida de futebol que nem sempre elogia o Cruyff (que, por sinal, também opera no ramo de artigos esportivos) e um sentido de humor quase geral, capaz de brincar com a própria mania de organização como, por exemplo, garantir que existem na cidade 70.793 garotas na bela idade de 20 a 29 anos, um total de 721 pombos na praça Dam, onde fica o Palácio Real, raramente ocupado pela rainha mas nem por isso menos iluminado à noite, e 110.643 pseudo-intelectuais, estes últimos reunindo-se, como de hábito, em lugares incertos e não sabidos.

Isso e tudo mais fazem de Amsterdã uma velha cidade rejuvenescida e cheia de novidades --onde a única coisa que não surpreende são os restaurantes italianos. O spaghetti de Amsterdã não tem diferença.






 

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