Descrição de chapéu Folha Turismo, 50

Leia texto escrito por Otavio Frias Filho em 1990 após viagem a Lisboa

Jornalista narrou suas impressões sobre a capital de Portugal no início da unificação europeia

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São Paulo

​País que vem batendo recordes em número de turistas, Portugal foi assunto da edição de 20 de dezembro de 1990 do caderno de Turismo.

O texto publicado na capa, sobre uma Lisboa que exibia os primeiros impactos da unificação europeia, é do jornalista Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha morto no último dia 21 de agosto aos 61 anos.

Reprodução de capa do caderno Turismo
Capa do caderno Turismo de 20 de dezembro de 1990 - Gabriel Cabral/Folhapress

Leia texto abaixo:

 

Portugal não é mais a "velha terrinha"

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO 

“E vóceish, quando é cã vão dar um jaito àquel peísh?” Depois de discorrer sobre a integração de Portugal à Europa unificada, o motorista de táxi fulminou, com a pergunta que estamos acostumados a ouvir de estrangeiros mas não de portugueses, séculos de cordialidade. Foi-se o tempo em que o Brasil era motivo de orgulho de Portugal. A imagem da América lusitana, de Estados Unidos dos trópicos, cedeu ao consenso internacional: devastação, drogas e Aids.

No caminho entre o aeroporto e o centro de Lisboa, não se perde a oportunidade de hastear a bandeira da Europa dos 12 ao lado da portuguesa. Talvez em nenhuma outra capital europeia se vejam tantas dessas bandeiras lacônicas e sinistras, uma coroa de estrelas amarelas sobre fundo azul-escuro, que mais parecem o emblema de algum planeta vilão num seriado de TV. Os portugueses hasteiam essas bandeiras com a sofreguidão de “late-comers”, com o orgulho ressentido e comovente de quem conseguiu ser admitido a custo e pouco antes de fecharem as portas. O Brasil, país do futuro, virou um passado a esquecer, um legado que se deve renegar, um parente incômodo a ser evitado.

Collor esteve lá em setembro. Deixou boa impressão, logo esquecida: numa vitrine da avenida Liberdade as fotos de sua visita foram trocadas rapidamente pelas de um viking triunfante, premiê de um desses países nórdicos, Dinamarca ou Suécia, tanto faz. Contradição em termos, Portugal tem pressa. E em matéria de gel nos cabelos e discursos sobre o capitalismo intergalático, prefere o original do Atlântico Norte à cópia, ao déspota esclarecido que pretende, como no romance de Evelyn Waugh, europeizar um país onde as formigas destroem os dormentes das ferrovias antes de o trem poder passar.

Sobre formigas e larvas tropicais, Gilberto Freyre escreveu que “semente, fruta, madeira, papel, carne, músculos, vasos linfáticos, intestinos, o branco do olho, os dedos dos pés, tudo fica à mercê desses inimigos terríveis”. Tanto para ele como para Sérgio Buarque de Holanda, o colonizador português venceu condições tão adversas graças à sua plasticidade, ao caráter dinâmico e fluido da sua cultura, amaciada as durezas da tradição feudal no contato precoce com o muçulmano e com a lassidão do Oriente.

Claro que essas interpretações são mais literárias que científicas. Mas o que surpreende em Lisboa é o contrário: uma rigidez carola, um apego à tradição, uma inflexibilidade que está na base até dos chistes linguísticos sobre a pouca inteligência. (Chistes que eles agora reciprocam: em qualquer hotel ou loja, do outro lado do balcão há sempre um lusitano ansioso por revelar a você o quanto ele considera os brasileiros duros de entender as coisas mais simples).

Não fosse pelas fachadas antigas e pela atmosfera buenoairina, Lisboa passaria por uma Uberlândia à beira-mar. As distâncias são curtas porque a cidade é acanhada mesmo. Abertas durante a longa ditadura (1933-1974) de Salazar, as avenidas mais amplas têm um aspecto vespertino e triste, de bulevares dos anos 40. O recheio entre essas avenidas é um labirinto de paralelepípedos, ruelas, becos gotejantes e escadarias, ocupado por um comércio de armarinhos, secos e molhados que só conhecemos nos romances de Machado de Assis.

A modernização avança sobre esse mundo de relíquias. Trechos da Lisboa antiga são incorporados por imobiliárias americanas, inglesas e espanholas. Os negros das ex-colônias ensaiam o estilo nova-iorquino mas ainda parecem pedir desculpas por usar cabelo vermelho ou verde. Para o turista brasileiro, é um conto de fadas que se desmancha e um Muro de Berlim que se ergue --entre eles e nós.

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