Fulaninho viaja até Chicago para comer em restaurante estrelado. Módena. San Sebastián. Sempre achei meio boboca e cafona pautar as férias com o estômago. Mas churrasco é diferente.
Churrasco dispensa formalidades e salamaleques. Não exige reserva com dois anos de antecedência. Ninguém inspeciona os seus modos à mesa. Aliás, mesa é opcional. Não tem dress code. Nada de pedir para o porteiro do hotel dar nó na sua gravata —a humilhação do maltrapilho vem com bônus. Nem calça comprida é obrigatória.
O último ponto veio muito a calhar quando esqueci de empacotar meus jeans ao embarcar para São Francisco de Paula, na Serra Gaúcha, onde fui participar do A Ferro e Fogo —uma churrascada elevada à trocentésima potência. Viajei 1.886 quilômetros para comer costela, somando os trechos aéreos e terrestres, ida e volta.
Todo domingo, o chef Marcos Livi monta uma parafernália em frente ao hotel Parador Hampel. Aparatos de ferro que lembram instrumentos medievais de tortura: hastes, traves, gaiolas, varais e correntes metálicas ocupam o gramado do lugar.
Então chega a lenha, rachada ante os olhos dos hóspedes pelos garçons. É um espetáculo de bruteza, condizente com a mitologia gauchesca.
Entra em cena a comida. Um cordeiro inteiro, crucificado e fincado no solo. Várias peças de costela de boi e de porco. Galetos trancafiados em bolas de ferro pendentes no varal. Linguiças. Cebolas, pimentões, berinjelas, repolhos, endívias e abóboras sobre a parrilla. Maçãs, peras e ameixas assadas sobre uma cama de sal grosso.
O serviço é finalizado em três churrasqueiras menores, instaladas na varanda do hotel. Na cozinha, um bufê com saladas, sobremesas, feijão-preto, dois tipos de arroz e três tipos de farofa.
Chovia aos cântaros naquele domingo, por isso metade da estrutura era indoor. O cantinho do fogo estava protegido por uma lona laranja que zoou o Instagram de todo mundo.
“Todo mundo” eram os hóspedes do Parador, mais gente que veio de outras cidades —principalmente de Porto Alegre— só para o churrascão.
Por R$ 95, “noventecinco pila” no dialeto regional, dá para comer até explodir o fecho éclair da bombacha.
Mas eu não tinha calças. Temia passar frio nas minhas bermudas. E passei —a temperatura baixou para 8ºC no meio de novembro. Só não contava com os borrachudos e as mutucas que devoraram minhas canelas na segunda-feira, quando já havia estiado e saímos para cavalgar.
São Chico de Paula fica a meia hora de Gramado, mas tem uma pegada diferente. Em vez de parques temáticos e fábricas de chocolate, mato. Quatis, cutias e gaviões aparecem o tempo todo nos bosques de araucárias, só para esfregar na cara dos humanos quem são os donos do pedaço.
A cidade de São Chico se estende ao longo da avenida onde fica o batalhão da polícia —que instalou, na calçada, duas casinhas para abrigar do frio cães sem dono.
Metade dos imóveis é ocupada por lanchonetes que servem xis: é o conceito sulista de sanduíche, peculiar e complexo demais para explicar aqui. Envolve milho e ervilha.
No canteiro central, salta à vista o Monumento à Cuia. Uma enorme escultura de cuia de chimarrão. Os ônibus cheios de famílias e velhinhos estavam a anos-luz de distância. Eu e meu iPhone tínhamos a cuia todinha só para nós.
Depois da imersão na natureza e na cultura locais, ansiava pelo merecido descanso. O chef tinha outros planos.
Marcos Livi acendeu novamente os seus brinquedinhos pirotécnicos para um jantar à base de peixes e frutos do mar. Uma corvina inteira espalmada numa tábua em frente à fogueira. Camarões, lulas, mexilhões, siri, bacalhau. Batatas na brasa.
E o cordeiro que havia sobrado do almoço de domingo. E um arroz feito com os restos da costela.
Estávamos, afinal, em território gaúcho. Carne não poderia faltar.
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