Parque Grande Sertão Veredas preserva paisagem descrita por Guimarães Rosa

Lugar é playground de fãs da literatura rosiana, mas também aventureiros e pesquisadores

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Luiz Felipe Silva
São Paulo

​​Foram necessárias duas tentativas para que Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, conseguisse vencer o “liso do Sussuarão”, região de platô que se localiza ao norte de Minas Gerais, na divisa com a Bahia. 

Na obra, o personagem e o bando de jagunços do qual ele faz parte sofrem com o forte calor e com a geografia adversa, composta por longos trechos de mata seca de cerrado

 

Essa composição natural, por outro lado, forma paisagens repletas de serras, chapadões, rios e veredas e serve de habitat para uma flora de frutos desconhecidos da maioria dos brasileiros (já ouviu falar do grão-de-galo?) e uma fauna diversa de mamíferos, peixes e aves (são mais de 400 espécies catalogadas). 
Grande parte disso, hoje, integra o Parque Nacional Grande Sertão Veredas.

O parque que homenageia o romance de Guimarães Rosa foi criado em 1989, após estudos realizados pela Fundação Pró-Natureza que atestaram a importância ecológica da região, sobretudo do ponto de vista da biodiversidade e dos recursos hídricos —por ali, correm os rios Preto e Pardo, por exemplo. 

Publicado em 1956, “Grande Sertão: Veredas” é considerado uma das maiores obras da literatura de língua portuguesa. Em 2002, o Clube do Livro da Noruega produziu uma votação com escritores de 54 países, e o livro de Guimarães Rosa foi o único brasileiro a figurar na lista final dos cem melhores.

Em 2004, o parque foi ampliado e atingiu sua configuração atual, com 230 mil hectares entre os municípios mineiros de Chapada Gaúcha (onde fica sua sede e portão de entrada), Arinos e Formoso e a cidade baiana de Cocos.

Além dos limites do parque, há mais riquezas naturais e culturais na região. Sediadas em propriedades fronteiriças, estão comunidades sertanejas (semelhantes àquelas que inspiraram personagens rosianos), como a da Estiva, a do Buracos e a do Buraquinho, que podem receber turistas.

Perto dali, a menos de 50 quilômetros de Chapada Gaúcha, fica o Parque Estadual Serra das Araras, cuja paisagem é destacada na obra de Guimarães Rosa (sobretudo a travessia do vão dos Buracos).

O turismo na região apresenta três perfis de interesse: quem viaja buscando conhecer a natureza local e faz trilhas e travessias de rios, quem é apaixonado pela literatura rosiana e quer ver in loco cenários de suas obras e quem pretende pesquisar a biodiversidade do cerrado.

Percorrer os caminhos do Parque Nacional Grande Sertão Veredas exige veículo com tração 4x4. São cerca de 150 quilômetros entre os dois portões de acesso da unidade, via estradas de terra em condições variadas —a organização do parque prevê que até o início de 2019 sejam concluídas obras nas pistas, e carros de passeio convencionais devem conseguir trafegar. Motos e bicicletas também podem cumprir os trajetos.

Conhecidas como “oásis do sertão”, as veredas são o atrativo número um na escolha dos guias turísticos da região. Para entrar no parque, é necessário estar acompanhado por um deles, que cobra, em média, R$ 150 por dia. 

O apelido de oásis é justificado: em meio à aridez do cerrado, surge uma formação natural de solo irrigado, inclusive com pequenas lagoas, e árvores de copa repleta de folhas verdes —é o caso da mais típica delas, os buritis. A vereda mais exuberante é a de Itaguari, a 60 quilômetros da entrada principal do parque.

Dentro dos limites da unidade há duas cachoeiras, a de Mato Grande e a Roncadeira —apenas a primeira está aberta a visitação. Embora a queda-d’água seja agradável para banho, o trajeto é ainda mais bonito. 

Para chegar até ela é preciso vencer mais de 100 quilômetros de estradas. No primeiro terço da viagem, o turista encontra mais uma paisagem descrita pelo herói de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”.

O rio Preto corta grande parte do território sul do parque, onde cruza o rio Santa Rita e, também, o rio Carinhanha, evento hídrico que forma uma paisagem única. O Carinhanha, que divide Minas Gerais e Bahia, é um dos mais referenciados na obra: ao longo de seus cerca de 450 quilômetros que irão desaguar no São Francisco, alterna trechos rasos, onde é possível atravessar a pé e tomar banho, e trechos com até 50 metros de profundidade.

No caminho até a cachoeira do Mato Grande também ficam o mirante da Seriema —recomendado pelos guias para ver o pôr do sol—, e uma torre de observação do ICMBio, de 30 metros de altura, onde turistas podem subir.

Um terceiro mirante se localiza no ponto final da trilha dos Três Irmãos, cujo trajeto se dá fora dos limites do parque. Trata-se de um trekking de 6,5 quilômetros (só ida) de subida que exige preparo físico, segundo guias. 

Com menor grau de dificuldade e com paisagem ainda mais impressionante, a trilha do vão dos Buracos vale um dia de viagem. Para chegar ao destino, a comunidade de Buracos, é necessário vencer uma caminhada de 5 a 7 horas na mata nativa, se esgueirar entre paredes de mina de ouro e cruzar trechos rasos de rio 16 vezes.

Quem chega até Chapada Gaúcha motivado a conhecer o sertão rosiano geralmente faz o mesmo pedido aos guias: visitar o local que se refere ao “liso do Sussuarão”. 

Durante décadas, estudiosos debateram sobre a existência de tal lugar na vida real e alguns afirmam que se trata de uma referência à serra da Sussuarana, em Cocos. Mas, segundo o crítico literário Alan Viggiano e especialistas locais, não há dúvidas: trata-se do “liso” (termo regional usado para descrever um platô) da Campina.

Ainda que não haja certeza sobre onde está o mítico “escampo dos infernos” de Riobaldo, no “liso” da Campina é possível ver muito daquilo que descreve o personagem: a dureza do sertão e a vida do sertanejo. 

Ao fim da trilha do vão dos Buracos e próximo ao encontro dos rios Preto e Carinhanha, estão, respectivamente, as comunidades do Buraco, do Buraquinho e do Estiva. 

Em todas, há moradores dispostos a servir refeições ou a abrigar turistas —além, claro, de contar casos. Não é difícil encontrar quem tenha relatos místicos e memórias da época da jagunçagem. 

O caso mais lembrado é o do jagunço Antônio Dó, o “Lampião de Minas Gerais”, que viveu na serra das Araras.

O clima de ode à obra de Guimarães Rosa é potencializado todos os anos em julho. O mês marca a data da festa do Encontro dos Povos, evento que reúne manifestações folclóricas, culturais e artísticas de mais de 60 grupos de comunidades tradicionais.

É também o mês do Caminho do Sertão: são percorridos a pé 160 quilômetros, em sete dias, desde a vila de Sagarana até Chapada Gaúcha.

O cerrado preservado do Parque Nacional Grande Sertão Veredas atrai pesquisadores de todo o país. 
Dentro dos limites da área conservada há, inclusive, um dormitório pronto para recebê-los e que, em casos eventuais, pode também abrigar grupos de turistas.

O trabalho realizado no parque garante a sobrevivência de uma fauna composta por pelo menos 62 espécies de peixe, 44 de anfíbios, 31 de répteis, 244 de aves e 56 de mamíferos, sendo nove delas ameaçadas de extinção, como o cervo-do-pantanal, o veado-campeiro, o tamanduá-bandeira o lobo-guará e a suçuarana.

O parque atrai grande volume de observadores de pássaros: dentre as mais de 200 espécies, algumas são raras e endêmicas. Para o turista comum, é fácil ver araras voando pelo céu, sobretudo a Canindé, de coloração azul.

A biodiversidade oferece também variedade de sabores. Entre as árvores de diferentes aspectos (cerrado típico, cerrado denso, cerradão, campo limpo, matas de galeria e ciliares, carrascos e veredas), muitas têm frutas saborosíssimas, caso da cagaita, do jatobá e do saputá.

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