Descrição de chapéu The New York Times

Funcionário de hotel fechado em Barcelona abre 1.400 torneiras a cada cinco dias

Daniel Ordoñez faz a manutenção da hospedagem enquanto a reabertura não é permitida na Espanha

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Raphael Minder
Barcelona | The New York Times

A cada cinco dias, Daniel Ordoñez abre 1.400 torneiras, em um hotel à beira-mar em Barcelona que os moradores locais conhecem como “a vela”, por causa do formato do edifício.

Cada torneira tem de passar cerca de cinco minutos aberta, e por isso a tarefa lhe ocupa o dia inteiro.

“Essa é provavelmente a parte mais tediosa do meu trabalho”, ele disse. O objetivo é evitar uma forma de pneumonia que pode ser difundida por bactérias na água, a doença dos legionários.

Ordoñez, o encarregado da manutenção do hotel, é o único ocupante contínuo do edifício nos dois últimos meses, e percorre os fantasmagóricos corredores sozinho por conta de outra doença que vem devastando seu país e o planeta, a Covid-19.

Quando o hotel fechou, na metade de março, como parte de medidas nacionais de confinamento adotadas para combater o coronavírus, o engenheiro industrial Ordoñez concordou em viver isolado no local a fim de evitar qualquer deterioração das instalações que possa retardar a reabertura, quando quer que isso venha a acontecer.

Ele agora vive sozinho no 24º andar, que lhe oferece uma vista incomparável da cidade, de suas praias e do Mar Mediterrâneo.

“No começo, achei que ia ficar aqui por cerca de duas semanas”, disse Ordoñez, que é solteiro. “Mas já se passaram oito e não há sinal de que o confinamento vá acabar”.

Construção grande de vidro em orla
O W Hotel, na orla de Barcelona, na Espanha, em imagem de 2012 - Martin Abegglen/Flickr/Creative Commons

O W Hotel, talvez a casa de hotelaria de luxo mais emblemática de Barcelona, tem 100 metros de altura e 27 andares, e domina a linha costeira da cidade. Algumas pessoas provavelmente considerariam perturbador caminhar pelos corredores desertos, contemplar os salões vazios e jantar sozinhas um prato de frango frito e legumes preparado em uma cavernosa cozinha de hotel, mas Ordoñez não se incomoda.

“É bem estranho ver meus poucos pares de meias girando nas máquinas de uma lavanderia enorme, mas tive tempo de me acostumar”, ele disse, com um sorriso sardônico, em uma entrevista recente a um visitante posicionado de forma a respeitar as normas de distanciamento social.

Com total oficial de mortes de pouco mais de 27 mil, a Espanha é um dos países europeus mais atingidos pela pandemia do coronavírus. Este mês, o governo em Madri começou a relaxar gradualmente as restrições de circulação, a fim de devolver o país ao que o primeiro-ministro Pedro Sánchez definiu como “a nova normalidade” pelo final de junho.

Mas não existe indicação de quando a Espanha recuperará as perdas sofridas pelo setor de turismo, que respondeu por 12% de sua atividade econômica no ano passado.

Até a sexta-feira (15), os visitantes estrangeiros estão sujeitos a 14 dias de quarentena ao desembarcar, uma medida que será mantida “pelo tempo necessário”, a fim de evitar “casos importados” que poderiam anular os ganhos obtidos com os esforços nacionais de confinamento, advertiu o ministro espanhol da Saúde, Salvador Illa, no dia 12.

Ordoñez, 37, deixou uma casa no subúrbio de Barcelona e ocupou um quarto do hotel de luxo, para continuar com seus deveres de manutenção. Ele disse que ficaria pelo tempo que fosse necessário, em um hotel que ele conhece inteirinho, dos dutos de ventilação às instalações subterrâneas de armazenagem.

“O hotel já era meu segundo lar antes do confinamento”, ele disse.

As medidas de confinamento e o fechamento de fronteiras impostos em diversos locais do planeta a fim de impedir a difusão do coronavírus deixaram muita gente estacionada em paradeiros implausíveis, entre os quais uma dupla de amigos hospedada em um pub vazio de Londres ou o casal que acabou passando uma lua de mel muito prolongada nas Maldivas.

Muita gente endinheirada fugiu das grandes cidades, encontrando refúgio nas áreas rurais ou mesmo em um centro de “wellness” em Bali.

Mas a decisão do hotel de Barcelona de pedir que Ordoñez ficasse para cuidar do edifício destaca uma outra questão: infraestruturas que precisam de cuidados, mesmo que os negócios tenham parado completamente.

Barcelona, um dos principais destinos turísticos da Europa, atraiu quase 12 milhões de visitantes no ano passado. Antes da chegada do coronavírus, moradores e políticos vinham debatendo o impacto desse movimento turístico sem precedentes, o que inclui questões como multidões chegando em navios de cruzeiro para passar o dia na cidade e a proliferação de apartamentos usados para locação via Airbnb, o que elevou os preços dos aluguéis residenciais no centro de Barcelona.

Agora, a ausência de turistas deixou Barcelona e outros destinos de férias na Espanha diante de uma ameaça econômica grave.

A Exceltur, organização espanhola de lobby turístico, previu em março que a arrecadação da Espanha com o turismo cairia em pelo menos 55 bilhões de euros —mais de R$ 337,3 bilhões— este ano.

“Se países como Espanha, Itália e Grécia não tiverem sua temporada turística de verão (o terceiro trimestre, no hemisfério norte), os países do norte [da Europa] também vão sofrer, porque terão de arcar com custos de resgate muito mais altos aos parceiros da União Europeia”, disse Bary Pradelski, professor associado de economia no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França.

Ele vem advogando uma retomada rápida das viagens de turismo —pelo menos entre regiões com baixo risco de contágio, dentro da União Europeia.

As viagens são um grande negócio para a União Europeia, da qual a Espanha é integrante (o turismo responde por 10% do produto bruto do bloco comercial). O livre movimento entre países também é um elemento essencial da vida em um continente interconectado.

Em um esforço por salvar a temporada de turismo do verão, a Comissão Europeia, divisão executiva da União Europeia, recomendou no dia 13 que países com níveis semelhantes de contágio pelo coronavírus relaxem as restrições de viagens.

A comissão disse que isso levaria por fim à restauração do livre movimento entre os 27 países do bloco. Mas a orientação da comissão não é obrigatória, e cada país tem direito a manter suas políticas.

Uma diária na suíte de cobertura do W Hotel de Barcelona pode custar 13,5 mil euros (R$ 82,8 mil). A administração do hotel se recusou a discutir as consequências financeiras de manter a suíte e os outros 472 quartos do hotel desocupados, desde março, mas na semana passada, a Marriott, controladora do grupo, reportou queda em seu lucro no primeiro trimestre. A Marriott também disse que sua receita por quarto caiu em 90% em abril.

No seu hotel, Ordoñez, que normalmente comanda uma equipe de 20 trabalhadores de manutenção, enfrentou alguns desafios —como tentar consertar alguma coisa em pé no topo de uma escada portátil.

Ele ocasionalmente pede ajuda à única outra pessoa que está trabalhando no hotel, o segurança de plantão que monitora as câmeras de uma sala de controle no subsolo (o guarda não dorme no hotel.)

Mas existe um lado positivo em trabalhar em um espaço deserto, disse Ordoñez. Este mês, ele testou o sistema de alto-falantes do hotel sem precisar se preocupar com incomodar os hóspedes.

“Normalmente dedicamos boa parte de nosso tempo a atender a queixas dos hóspedes”, ele disse. “Esse problema com certeza desapareceu, por enquanto”.

No começo do confinamento na Espanha, com o país sofrendo número cada vez maior de mortes e uma devastação econômica cada vez mais intensa, Ordoñez decidiu fazer mais do que testar as torneiras. Ele ajustou as cortinas e a iluminação de alguns quartos e criou a imagem de um gigantesco coração na fachada.

O gesto se tornou um marco de solidariedade aos profissionais de saúde do país. Desde que o calçadão da praia reabriu, este mês, os moradores vêm tirar fotos diante do coração.

“Pareceu um jeito ótimo de me conectar com o que estava acontecendo lá fora”, disse Ordoñez.

Tradução de Paulo Migliacci

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