'Quer matar um piloto, deixa ele em casa', diz comandante durante a pandemia

Sem voar há mais de 20 dias, profissional afirma que sente falta da rotina no ar

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São Paulo

Corredores vazios, lojas fechadas e avisos sobre o uso de máscara são os sinais mais aparentes de que a rotina de quem viaja de avião mudou e o movimento nos aeroportos diminuiu como consequência da Covid-19.

Antes de um voo na segunda-feira (25), o comandante da Latam João Santos, 41, não pilotava uma aeronave havia mais de 20 dias por causa da diminuição do número de partidas. Santos afirma que nunca havia visto um impacto tão grande no setor e que sente falta de exercer a profissão. Confira, abaixo, o depoimento.

No momento em que eu chego ao aeroporto, não vejo mais aquela intensidade de pessoas que estava acostumado a encontrar. Você sente o impacto.

Vou fazer 20 anos de profissão e nunca vi isso. Nem no 11 de Setembro, nem nas outras crises que vivemos. É impactante para qualquer pessoa.

À esquerda, o piloto João Santos, 41, e à direita, o copiloto Lucas Favarin, 32, em voo da Latam
À esquerda, o piloto João Santos, 41, e à direita, o copiloto Lucas Favarin, 32, em voo da Latam - Marília Miragaia/Folhapress

Meu último voo foi dia dois de maio e senti falta de voar várias vezes. Piloto e comissário são profissões que a pessoa quer exercer desde pequeno e são coisas que ela gosta muito de fazer.

Ficar parado não é uma opção. Voar chega a ser um vício até. Um dia desses eu estava em casa, de folga a semana inteira por causa da pandemia, e eu pensei: que vontade estar voando.

Imagina que estou há 20 anos nessa profissão e, do dia para a noite, preciso estar em casa. Lugar de piloto é dentro do avião. Você quer matar um piloto, deixa ele em casa.

Eu até brinquei com a minha família: eu era um marido e comecei a ser outro durante a pandemia. Depois da Covid-19 passaram a me conhecer de uma forma diferente porque eu estou em casa direto agora.

O maior indicativo da pandemia é a falta de passageiro. O que muda é a movimentação de passageiro e avião, que não tem.

Agora, estou sentindo um espaçamento muito grande de voos, mas senti um progresso suave no retorno das atividades. As pessoas estão querendo voltar de novo.

Nos meses de trabalho normal, eu não consigo ter uma rotina: trabalho em sistema de escala de voo, e, nele, você não tem um horário predefinido ou destino que vai seguir todo mês. Ela inclui diversos horários e diversos estados.

Chego sempre 40 minutos antes do horário necessário que é para não ter problema. Minha mulher sempre fala: "não sei como você consegue dormir 18h para ter que levantar 3h da manhã". Eu acordo zerado, mas tem toda uma rotina para isso.

Hoje, por exemplo, dormi às 18h e acordei 4h. Tomei café da manhã no aeroporto e fiz um briefing com a equipe. Almocei às 14h, a refeição era uma massa, um penne com pesto. Não como carne, sou vegetariano.

Agora, muitos aviões estão no hangar “adormecidos”, protegidos, esperando o momento de voltar a funcionar.

Mas tenho uma esperança grande de que as coisas vão acontecer mais rápido do que a gente pensa. A gente vai ter que se reinventar e eu tenho esperança que isso passe logo.

A empresa aérea nunca espera as coisas acontecerem, ela sempre se antecipa. E ela teve uma reação muito rápida. Para se fazer isso em uma empresa desse tamanho, você precisa de uma equipe muito bem estruturada.

Hoje fiz quatro etapas de voos com 55 minutos. Agora, eu vou para casa feliz. Primeiro, porque eu fiz um voo e também porque eu estou indo para casa, que é sempre bom.

Você não vai conseguir ver meu sorriso, porque estou de máscara.

João Santos, 41, é piloto de avião da Latam. Depoimento dado a Marília Miragaia

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