Descrição de chapéu The New York Times

Veneza vislumbra um futuro com menos turistas, e gosta do que vê

Fluxo intenso de visitantes traz dinheiro, mas também força moradores a deixar a cidade

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Jason Horowitz
Veneza | The New York Times

Os venezianos lotavam a praça, o que acontece raramente.

Dias antes de a Itália suspender as restrições a viagens adotadas por conta do coronavírus, que impediam a costumeira aglomeração de visitantes estrangeiros na cidade, centenas de moradores locais se reuniram, posicionados sobre marcas feitas com giz a intervalos de alguns metros.

O objetivo era protestar contra uma nova doca que permitiria a chegada de cargas ainda maiores de turistas, em um dos últimos bairros habitáveis de Veneza, mas também aproveitar uma oportunidade única de demonstrar que um futuro diferente, menos sobrecarregado de turistas, era viável.

“Esta pode ser uma cidade funcional, e não apenas um lugar que as pessoas visitam”, disse o organizador do protesto, Andrea Zorzi, 45, um professor de Direito que distribuiu centenas de cartazes com os dizeres “nada muda se você não mudar nada”. Ele argumentou que o vírus, por mais trágico que tenha sido, demonstrou que Veneza pode ser um lugar melhor. “A cidade pode ser normal”, ele disse.

O coronavírus expôs os pontos fracos das sociedades que devastou, seja as deficiências econômicas, seja a desigualdade racial, a dependência excessiva quanto a cadeias mundiais de produção ou os sistemas de saúde pública precários.

Na Itália, todos esses problemas se fizeram sentir, mas o vírus também revelou que um país abençoado com um patrimônio artístico deslumbrante desenvolveu um vício em turismo que forçou muitos dos cidadãos locais a abandonar as regiões históricas das cidades em que viviam, onde os preços se tornaram inacessíveis, e expulsou do cenário a criatividade, o empreendedorismo e a vida italiana autêntica.

Durante o período de confinamento, o centro de Roma ficou sonolento como uma ruina, enquanto os bairros adjacentes se mantinham vibrantes. O prefeito de Florença anunciou que viajaria pelo mundo, começando pela China, a fim de arrecadar fundos privados para uma cidade que perdeu seu sustento com a ausência dos turistas. Mas é em Veneza, uma cidade ameaçada por inundações de dezenas de milhões de turistas a cada ano tanto quanto o é pela alta do nível do mar, que as coisas mudaram de maneira mais drástica.

Por meses, as vielas, pórticos e campos reverberaram com o som do italiano, e mesmo com o do dialeto local veneziano. A ausência das embarcações de grande porte reduziu as ondas nos canais, permitindo que os moradores locais usassem seus botes e caiaques em águas mais limpas. Os moradores chegaram até a arriscar visitas à Praça São Marco, algo que eles costumam evitar.

Veneza, que deu ao mundo a palavra quarentena, como resultado de uma pandemia do passado, passou por muitas transformações em seus cerca de 1.500 anos de história. A cidade surgiu como um abrigo para refugiados, e se tornou uma poderosa república, uma força mercantil e um polo para a arte.

Agora, é um destino turístico que vive basicamente de sua história e de um setor de viagens que gera cerca de três bilhões de euros (aproximadamente US$ 3,3 bilhões) anuais em receita.

Mas o dinheiro vem acompanhado por hordas de visitantes para estadias breves, gigantescos navios de cruzeiro, uma presença cada vez maior de apartamentos para locação via Airbnb, lojas de presentes, restaurantes que não passam de arapucas para turistas, e aluguéis que se tornaram tão caros que forçaram os venezianos a deixar a cidade.

Esse modelo econômico altamente lucrativo está a ponto de retornar. Mas as pessoas que propõem há muito tempo uma cidade menos turística esperam tirar vantagem da paralisação mundial.

“Essa é uma tragédia que atingiu todos nós, mas a Covid também deve ser vista como oportunidade”, disse Marco Baravalle, um dos líderes do movimento de oposição aos navios de cruzeiro, que definiu a ausência das grandes embarcações como “magnífica”.

Ele disse temer que o prefeito da cidade, Luigi Brugnaro, com o apoio de poderosos interesses turísticos e do setor de navegação, tente devolver as coisas ao que eram o mais rápido possível. “Será difícil”, disse Baravalle. “Mas é nossa melhor oportunidade”.

Se os críticos do turismo concordam quanto à necessidade de uma visão diferente para Veneza, eles não são tão claros quanto à maneira de promover um renascimento.

Há conversas sobre a construção de um centro internacional para o estudo da mudança do clima, sobre uma redução de aluguéis para atrair de volta às ilhas os artesãos e operários locais que se transferiram ao continente, e sobre a formação de uma comunidade criativa de artistas, designers, produtores de web e arquitetos.

Nesse campo dos sonhos flutuante, a expectativa é de que as pessoas virão. Mas outro tipo de pessoa. Os novos turistas seriam mais parecidos com os fãs da arte que afluem para a Bienal de Veneza, e estariam equipados de sacolas ecológicas e de um interesse na herança veneziana, e nos museus e galerias da cidade.

Os estudantes ficariam e se tornariam jovens profissionais liberais, ajudando a atrair investidores em startups, e a substituir uma população que está em queda e cuja idade média vem subindo cada vez mais. Bons restaurantes e “wine bars” ecológicos substituiriam as casas horrendas que servem aos turistas atuais.

“O tipo de pessoa que Veneza atrai é definido por aquilo que é oferecido”, disse Luca Berta, um dos fundadores da VeniceArtFactory, que promove arte nova na cidade, em uma conversa travada no espaço de exposições de sua organização.

Alberto Ferlenga, o reitor da Universidade Iuav, de Veneza, uma das diversas instituições de ensino superior da cidade, disse que seu objetivo era tornar Veneza uma cidade mais universitária, com estudantes e professores que fariam de toda a cidade o seu campus.

Ele disse que estava trabalhando em um projeto com o governo da cidade, poderosos bancos italianos e o Airbnb para permitir que milhares de estudantes —entre os quais alunos estrangeiros— vivessem em apartamentos do Airbnb que agora estão vazios, em lugar de virem a Veneza de suas acomodações mais baratas no continente.

“O senso comum diz que devemos tirar vantagem dessa oportunidade”, disse Ferlenga sobre a disponibilidade de unidades residenciais. Os estudantes que decidirem permanecer e construir carreiras e criar famílias em Veneza podem se provar tão economicamente viáveis quanto o mercado de turismo de massa, ele argumentou. “Isso mudaria tudo”, disse. “No momento, temos uma janela temporária”.

Mas enquanto os proponentes dessas ideias discutem sobre como motivar empréstimos de longo prazo por meio de incentivos fiscais, sobre empréstimos a juros baixos e sobre uma restrição dos direitos de ocupação, infames por sua generosidade, a janela já está se fechando.

Nos últimos dias, a cidade só estava aberta às pessoas da região italiana que a abriga, o Vêneto. E ainda assim, Veneza estava lotada.

Mas a cidade teve a oportunidade de contrastar aquilo que foi com aquilo que poderia ser. Só italiano —e italiano com sotaque do Vêneto— era ouvido em torno das mesas nas quais as pessoas bebiam água gasosa e comiam o espaguete com molho de lula típico da região.

“Decidimos aproveitar essa última chance de ver Veneza enquanto ela ainda está reservada só a nós”, disse Mateo Rizzi, 40, que vive na vizinha Portogruaro. Os filhos dele tinham câmeras nas mãos ao cruzar a ponte da estação ferroviária para a cidade. “É como termos o museu só para nós”.

Toto Bergamo Rossi, diretor da Fundação da Herança Veneziana, vive em um palácio não muito distante da estação de trem, e disse que as multidões o haviam acordado com seu barulho, na manhã daquele dia.

“Fiquei muito triste e ao mesmo tempo muito zangado”, disse Bergamo Rossi, que tem um ancestral cuja estátua equestre decora a praça na qual os manifestantes protestaram. “Não queremos voltar àquilo. Quero que minha cidade seja uma cidade real”.

“O Airbnb é como a nossa Covid”, ele disse. “É como uma praga que nos transformou em uma cidade fantasma”.

A organização dele preparou uma carta aberta em nome dos “cidadãos do planeta”, que ele declarou que seria enviada esta semana aos líderes do governo italiano.

Assinada por diretores de museus e acadêmicos, mas também por Mick Jagger, Francis Ford Coppola e Wes Anderson, a carta propõe “dez mandamentos” para a Nova Veneza, incluindo regulamentação mais severa do “fluxo de turistas” e do mercado do Airbnb, e apoio às locações em longo prazo.

Os defensores do status quo descartam essas propostas sem pensar duas vezes, classificando-as como simples ruído vindo de pessoas ricas e famosas que estão fora de contato com a realidade. E os trabalhadores locais do setor de turismo dizem esperar que as coisas se recuperem logo.

“Foi um mau período. Mas acredito que em dois ou três meses as coisas voltarão a ser como eram”, disse Jessica Rossato, 28, que vive em Camponogara, uma cidade vizinha. Ela estava diante do bar Banco Giro, perto da ponte Rialto. “E isso com certeza é uma coisa boa”.

Mas não são apenas os moradores de classe alta e os profissionais liberais de Veneza que anseiam por uma cidade onde seja mais fácil viver. Um casal que está esperando um bebê e visitou à cidade, vindo do continente, disse que os aluguéis, mesmo nos bairros operários, eram altos demais para seus salários.

“Adoraríamos criar nosso filho aqui”, disse a mulher, Sara Zorzetto, 30, que trabalha com deficientes e cujo marido é empregado de uma indústria química na região. “Mas não há como”.

É por isso que os manifestantes na praça estavam protestando sobre a necessidade de que alguma coisa mude. Em meio a cartazes erguidos e aplausos, Zorzi lhes disse que a “batalha comum” que travaram durante o período de confinamento “não seria em vão”.

Um manifestante perguntou se eles marchariam na direção do novo porto para turistas, como planejado. Zorzi explicou que a polícia não havia aprovado a ideia devido à preocupação sobre o coronavírus.

"Disseram que pessoas demais estão participando", ele afirmou, meneando a cabeça.

Tradução de Paulo Migliacci

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