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Toda
segunda-feira, assim que as crianças terminam de almoçar
na escola Kensington Parkwood, numa cidadezinha nos arredores
de Washington, uma professora aparece no refeitório
com uma urna cheia de papeizinhos amarelos com o nome dos
alunos que se comportaram bem na semana anterior. Três
são sorteados de cada vez. Eles recebem aplausos dos
colegas, posam para fotografias e ganham a chance de participar
de um programa de televisão exibido no circuito interno
da escola.
Há poucas semanas, um evento semelhante foi encenado
para celebrar uma experiência nova e radical na escola
Shaw-Garnet-Patterson, no centro de Washington. As crianças
se reuniram no ginásio do grupo escolar. O prefeito,
Adrian Fenty, e a superintendente da rede pública de
ensino, Michelle Rhee, estavam ali. Fenty começou seu
discurso como se fosse um animador de auditório: "Quem
gosta de dinheiro?" Todas as crianças na platéia
levantaram as mãos e responderam em coro, fazendo o
chão vibrar.
Em vez de certificados, os alunos que estavam no ginásio
ganharam cheques da prefeitura. Suas fotos não foram
expostas apenas no mural da escola: saíram na primeira
página dos jornais do dia seguinte. As crianças
também foram entrevistadas por emissoras de TV locais
e até uma jornalista francesa apareceu para falar com
elas.
Cerca de 78 mil crianças e adolescentes estudam nas
236 estabelecimentos de ensino de Washington, a capital dos
Estados Unidos. As escolas são as piores do país.
O desempenho dos alunos nas provas de inglês e matemática
que são feitas regularmente no país inteiro
fica sempre bem abaixo da média nacional. Apenas 43%
dos estudantes que entram no colegial ficam até a hora
de tirar o diploma. O número de matrículas tem
caído ano a ano, porque muitos pais preferem se mudar
para buscar vagas em escolas melhores nas cidades vizinhas.
Distribuir dinheiro para incentivar os alunos a se aplicar
mais nos estudos é a última cartada lançada
pela Prefeitura de Washington para agitar seu sistema público
de ensino. O programa, batizado de Capital Gains, foi criado
pelo economista Roland Fryer, um professor da Universidade
Harvard que há anos busca maneiras de reduzir a distância
que separa o desempenho acadêmico de crianças
brancas e negras.
A história pessoal de Fryer parece um conto de fadas
e poderia ser suficiente para motivar muitos estudantes sem
que fosse preciso desembolsar um centavo: negro e pobre, abandonado
pela mãe quando era criança e criado pelo pai
alcóolatra, ele se tornou professor-assistente em Harvard
antes de completar 30 anos.
O menino Fryer passava as férias escolares com a avó
materna, que era professora e foi sua maior fonte de motivação.
Se ele se comportasse bem, a avó permitia que vendesse
nas ruas latas que ela juntava em casa. Fryer chegou a ganhar
em um ano US$ 13 com as latas, uma pequena fortuna para uma
criança da sua idade.
Fryer ainda não sabe se o programa de distribuição
de dinheiro que está ajudando a implementar em Washington
é a melhor maneira para manter os alunos motivados
na escola. Mas ele acredita que os incentivos tradicionais
não funcionam. Muitas crianças estão
acostumadas a ouvir que, se estudarem direito, vão
conseguir bons empregos depois, mas Fryer acha que essa idéia
é só uma abstração. "Muitas
dessas crianças nunca viram alguém que conheçam
realizando esse sonho na vida real", diz.
O programa de Washington começou a ser posto em prática
no mês passado. Para colocar as mãos no dinheiro,
os estudantes precisam evitar chegar atrasados às aulas,
comportar-se bem e tirar boas notas. Quem tiver melhor pontuação
pode ganhar até US$ 200 por mês. O público-alvo
são os alunos do ensino médio, etapa especialmente
crítica da vida escolar em que o desempenho da garotada
começa a cair e muitos abandonam a escola para sempre,
segundo Fryer.
Fryer dividiu as 28 escolas de ensino médio de Washington
em dois grupos. Quinze entraram no programa de incentivos
financeiros e as outras não. Seu objetivo é
usar o segundo conjunto de escolas como uma espécie
de grupo de controle, para avaliar os resultados do programa
e tentar medir o impacto que os incentivos poderão
ter sobre o desempenho dos alunos.
O programa tem orçamento de US$ 2,7 milhões,
a ser repartido quase igualmente entre as escolas de Washington
e Harvard. O dinheiro que os alunos ganham é depositado
a cada 15 dias numa conta aberta para eles.
Mais de 80% dos estudantes de Washington são pobres
e negros. A maioria vive apenas com as mães, que em
geral têm dois empregos e ninguém para ajudar
quando chegam em casa depois do trabalho. "Você
acha que essas mães têm energia para ajudar os
filhos a fazer a lição de casa?", pergunta
Brandon Eatman, diretor de três escolas da cidade. "Muitas
crianças daqui não conhecem nada além
do próprio bairro e a única coisa que entendem
é sobre drogas, crimes, e coisas dessa natureza."
Kenny Coffin, menino miúdo de 11 anos, um dos primeiros
a receber os cheques da prefeitura, teve de tomar algumas
providências para garantir sua parte do dinheiro. Para
não chegar atrasado às aulas passou a tomar
banho à noite e não de manhã. Quando
cruza com os amigos no corredor, diz que não tem tempo
para conversar. "Continuo reto e só falo com eles
no recreio", conta.
O programa de incentivos financeiros é parte de um
conjunto audacioso de reformas que começou a ser adotado
depois que Michelle Rhee assumiu o cargo de superintendente
da rede de ensino público de Washington, há
um ano. Para ela, a pobreza e outras condições
externas desanimadoras não podem ser justificativas
para engessar a ação dos professores: "Você
não pode dizer 'meus estudantes não tomaram
café da manhã hoje' ou 'cortaram a eletricidade
na casa deles, por isso não fizeram a lição'",
explica ao Valor.
Michelle ganhou atenção nacional pelas medidas
que vem tomando, muitas impopulares. Ela demitiu centenas
de funcionários, entre diretores, professores e assistentes.
Além disso, começou a pagar bônus para
os professores cujos alunos vão bem nas provas e criou
um sistema de avaliação dos funcionários
da rede pública. Michelle está negociando com
o sindicato de professores municipais mudanças no contrato
coletivo da categoria. Ela promete aumentar os salários
de Washington para US$ 131 mil por ano, o que faria desses
professores os mais bem pagos do país.
Enquanto isso não ocorre, a professora Lisa Warrick,
que há 15 anos trabalha em Washington, desembolsa dinheiro
do próprio bolso para lidar com a falta de material.
"Faço isso porque quero ensinar para as crianças
o seguinte: podem tirar tudo de vocês na vida, mas educação
é uma coisa que fica e isso ninguém tira, fica
aqui, ó", diz, apontando a própria cabeça.
Michelle afirma que o programa de incentivos financeiros deve
ser visto como um complemento das outras reformas que estão
sendo postas em andamento. Ela explica que a recompensa é
baseada numa premissa simples: incentivos podem ajudar a motivar
os estudantes e levá-los a bons resultados no aprendizado.
"Esse programa oferece incentivo a curto prazo para encorajá-los
a fazer o que tem de ser feito: estudar duro para progredir."
A superintendente trabalha tanto que mal sobra tempo para
dormir. No mês passado, cochilou quando estava assistindo
ao último debate entre os canditatos à Presidência
dos Estados Unidos e acordou com o toque incessante de seu
BlackBerry. Era uma mensagem de um amigo sobre o que ela acabara
de perder. Seu trabalho fora elogiado pelos dois candidatos.
"Temos agora uma nova e excelente superintendente de
ensino que está lá trabalhando duro com o prefeito",
disse Barack Obama.
Durante anos as escolas usaram suspensões, classes
de recuperação e programas especiais nas férias
para lidar com comportamentos inadequados e falhas de aprendizado,
com parcos resultados. "Acreditamos que este é
o momento para intervenções radicais. Estamos
muito animados com este programa", garante Michelle.
Fryer coordenou iniciativas semelhantes em Nova York e Chicago,
mas ainda existem poucos estudos para confirmar se esse tipo
de experiência funciona. A análise dos resultados
do novo projeto ainda vai demorar a aparecer. Em Dallas, um
programa parecido oferece dinheiro para os alunos que lerem
livros. Em várias escolas americanas é comum
a oferta de dinheiro de mentirinha como prêmio, que
pode ser usado para adquirir brindes numa loja da escola.
Embora muita gente fique animada com essas iniciativas, elas
estão longe de alcançar unanimidade. Um dos
que torcem o nariz para elas é Alfie Kohn, especialista
em educação que publicou vários livros
sobre o assunto. Segundo ele, recompensas, assim como punições,
produzem apenas obediência temporária, mas não
ajudam as crianças a querer de fato aprender. Pesquisas
mostram que, quanto mais as pessoas são recompensadas
pelos seus atos, mais tendem a perder o interesse no que estão
fazendo para ganhar o prêmio. E, pior, depois de ser
recompensadas por fazer algo por prazer, só farão
novamente diante recompensas; senão, nada feito.
Recompensar os estudantes com prêmios é uma característica
marcante da sociedede americana. É comum os professores
oferecerem os artigos mais variados para motivar sua turma:
adesivos, doces e até ingressos para parques de diversões
e vale-presentes de lojas de artigos eletrônicos.
Kohn observa que umas das razões para os adultos gostarem
tanto de dar recompensas é o fato de isso os desobrigar
de buscar outras maneiras de incentivar a curiosidade das
crianças. "Você não precisa tratar
as crianças como cachorro e dar biscoitinhos quando
elas fazem algo que a gente quer", argumenta. Vários
estudantes têm dificuldade em aprender, dizem os críticos,
simplesmente porque estão indo para escolas ruins,
problema que incentivos financeiros e outras recompensas não
resolvem.
Os defensores do projeto rebatem as críticas citando
outro benefício do programa: ajudar os alunos a adquirir
a habilidade de lidar com dinheiro. Tudo o que as crianças
ganham é depositado numa conta que só pode ser
movimentada com a permissão delas. Os beneficiários
terão aulas de finanças pessoais oferecidas
pelo banco e serão orientados a fazer bom uso do dinheiro.
Jai Carson, de 13 anos, que ganhou seu primeiro cheque no
mês passado, tem muitos planos para o futuro. Ele quer
ser jogador de futebol americano, ter dinheiro, mulher, três
filhos e uma casa bem grande. Pretende poupar parte do dinheiro
que receber e gastar o restante em sapatos e casacos.
Seu amigo Kenny Coffin também planeja guardar a maior
parte do dinheiro: "Vou comprar um sapatinho para meu
primo que vai fazer um ano, o resto vou guardar." Ele
quer ser jogador de basquete quando crescer, mas sabe que
precisa se preparar para o caso de não conseguir: "Tenho
de ter um plano B", revela, sentado na cadeira da sala
do diretor da sua escola, balançando os pés,
que não alcançavam o chão.
A participação no programa é voluntária.
Os pais que não concordarem com a iniciativa podem
deixar os filhos de fora. "Crianças ricas ganham
dinheiro dos pais por tirar notas boas o tempo todo",
alega Fryer. "Por que não oferecer essa chance
para os menos favorecidos também?"
Brandon Eatman, o diretor que administra três escolas
da cidade, diz que investiria de outra maneira os US$ 2,7
milhões que serão gastos com o programa, se
a decisão fosse sua. "Quando eu era criança,
ninguém pagava para você ir para escola e fazer
lição. Fazia porque tinha de fazer", fala.
"Mas vivemos em outros tempos. Se há a possibilidade
de esse incentivo ajudar as crianças, porque não
tentar?"
Como ocorre com o Bolsa Família no Brasil, o programa
de Washington usa o dinheiro para estimular o envolvimento
com a escola e promete resultados no curto prazo. Mas as diferenças
são marcantes. O programa brasileiro dá o dinheiro
para as famílias e exige em troca que as crianças
freqüentem a escola e visitem regularmente um posto de
saúde. O prorama americano entrega o dinheiro diretamente
para os estudantes e exige como contrapartida melhorias no
desempenho escolar e não apenas a assiduidade.
Como os programas executados nos EUA são muito recentes,
não há ainda análises conclusivas sobre
seus resultados e o impacto que os incentivos tiveram sobre
o aprendizado dos alunos. No dia em que os primeiros cheques
foram distribuídos em Washington, Fryer participou
da cerimônia ao lado do prefeito e de Michelle. Na hora
do seu discurso, ele apontou as câmeras de TV e se dirigiu
às crianças: "Hoje o dia é de vocês.
O mundo inteiro está esperando para ver se este programa
vai ajudar vocês. Podem fazer isso?"
Algumas crianças foram chamadas para segurar com Fryer
e as autoridades um cheque gigante de papelão com o
valor total recebido pelos estudantes daquela escola nas primeiras
duas semanas do projeto, US$ 4.538. Dominique Watson, de 13
anos, que participou da foto, disse que tem três desejos:
ver a mãe feliz, ser escritora e ficar famosa. "Olha,
você vai ser famosa agora!", exclamou um dos seus
colegas, apontando uma das equipes de televisão. Dominique
riu para as câmeras, mas é cedo para saber se
o programa terá vida mais longa que os seus 15 minutos
de fama.
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