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Carta da semana

A Morte do Assobio

"Pode parecer ridículo, mas há alguns dias fiquei envergonhado por estar assobiando despreocupadamente uma música no meio das pessoas com quem trabalho. Parei para prestar atenção a minha volta e todos estavam trabalhando em silêncio, sem perceber o que se passava comigo. Foi quando comecei a me dar conta que mais ninguém em meu escritório tem esse mesmo hábito.

Na hora me lembrei de ter ouvido recentemente alguém contar um “causo” sobre uma situação parecida (talvez tenha sido o Rolando Boldrin). O sujeito entrou assobiando num elevador e o ascensorista virou para ele perguntando de forma afirmativa: “você é do interior, não é?”, ele respondeu: “sou, como você sabe?”, a explicação foi rápida e simples: “é que o pessoal de São Paulo não assobia não...”

Juntei minha sensação com a lembrança desse “causo” e, muito incomodado, comecei uma pesquisa, informal, usando como universo todas as pessoas com quem tenho relacionamento diário aqui em São Paulo e em várias cidades do interior. Fiquei espantado e triste com a conclusão a que cheguei: o hábito de assobiar músicas parece estar realmente morrendo em São Paulo!

Descobri que grande parte dos jovens paulistanos nem mesmo sabe assobiar, e acham esse hábito velho, brega ou simplesmente chato. Era praticamente assim que eu havia me sentido quando tive aquele “click” no meio de meu escritório: um velho, chato, com uma atitude brega!

O passo seguinte foi começar a formular teorias, sem qualquer base científica. Coisa de quem gosta de “viajar” nas idéias. No interior do estado a convivência e o hábito de prestar atenção nos pássaros era muito comum. Moro em São Paulo, mas sou de Sorocaba e lembro-me de sempre ver alguém em frente a uma gaiola, ou no pé de uma árvore assobiando para imitar os passarinhos. Exercitando e aperfeiçoando o assobio. A cena era tão comum que toda criança tentava aprender a assobiar.

Além disso, não era comum termos música em todo lugar como hoje, com cds nos carros, walkman na mochila, música no pc, o que fazia do assobio o único “ipod” da época, a música portátil de nossa preferência, em qualquer lugar, para qualquer ocasião. Essas duas situações já são diferenciadas em São Paulo há muito tempo. O contato com a natureza é muito menor que no interior ou que em outras capitais do país, e o uso de “players” portáteis está significativamente mais difundido.

Se essas duas teorias são realmente verdadeiras esse fenômeno pode vir a ocorrer em outras cidades de médio e grande porte, pelo país afora, nos próximos anos. Não vivo de música, mas sou músico amador nas horas vagas, música sempre fez parte da minha vida desde pequeno. Sendo assim, assobio de tudo um pouco, de Coltrane a Avril Lavigne, de Caetano a Coldplay, de Led Zeppelin a Rappa! Acho que é por isso que fiquei ainda mais implicado com essa constatação, e mais triste ainda porque acho que é um caminho sem volta. É uma arte, um pouco da nossa cultura que vai morrendo.Mais um velho hábito, um pouco de poesia, que vai ficar apenas na memória",
José Henrique Dell'Osso Cordeiro - cordeiro@sobcontrole.com.br

CIDADÃO JORNALISTA é um espaço destinado aos leitores e ouvintes que ao relatarem fatos e experiências de sua cidade, comunidade e cotidiano, tornam-se repórteres por um momento.