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urbanidade
01/11/2006
O goleiro e o cineasta

Nas suas lembranças está o dia em que, num jogo decisivo, alguém lhe perguntou: "Aquele ali não é seu pai?" Era

UM DOS criadores do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, Cao Hamburguer integra aquele tipo de paulistano, quase em extinção, que fazia da rua a extensão da casa. Quando menino, o bairro em que ele morava -o Butantã- não oferecia o perigo dos carros nem a ameaça dos assaltantes. Naquela época, estavam construindo as marginais, e um dos prazeres da garotada era brincar e se sujar com a argila macia das escavações.

Mas o melhor de tudo era a abundância de áreas verdes, onde Cao se destacava como goleiro. Sua destreza o levou a titular do Bandeirante Futebol Clube, no qual, para a surpresa das platéias, jogava (e bem) uma menina. "Não vou exagerar, mas acho que era nosso melhor jogador." A partir de amanhã, será possível ver como o menino apaixonado por agarrar a bola acabou inspirando o adulto cineasta. "Ser goleiro é sempre estar diferente e ameaçado."

Quando entrou no Colégio Equipe, Cao continuou no gol. Mas mudaram os prazeres da rua, muitos dos quais se tornaram noturnos. Seus colegas, na escola, estavam mais interessados em artes do que em esportes. Era o caso dos compositores e cantores Nando Reis, Arnaldo Antunes e Marcelo Frommer, além do artista plástico Nuno Ramos e do fotógrafo Bob Wolfenson. Na década de 1970, o Equipe, em parte pela animação de Serginho Groisman, fervia em shows de música, peças, filmes e debates, sempre com um ar de resistência. "Aquela experiência foi tão forte que nem achei necessário fazer faculdade", comenta Cao, filho de dois professores de física da USP, Ernst e Amélia.

Diferente mesmo e ameaçado ele se sentiu quando seus pais foram presos, acusados de dar suporte a grupos de resistência aos militares. Cao e seus irmãos, desconcertados, foram divididos e cuidados pelos avós paternos e maternos. "O que aconteceu na prisão sempre foi um tema tabu na família." Cao se recorda de uma sensação de incerteza que jamais tinha experimentado. "Você sente tudo desmoronar."

Quem carrega essa sensação de incerteza, em "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", dirigido por Cao, é o personagem Mauro. Não é um filme autobiográfico, só traz algumas lembranças do diretor, refletidas no menino cuja ansiedade oscila entre a expectativa da volta dos pais e o desfecho da Copa de 70, em meio a brincadeiras de rua no Bom Retiro. Antigamente habitado em sua maioria por judeus, aquele bairro e o goleiro servem para ilustrar a idéia do exílio tanto de seus moradores como o do garoto. Como Cao, Mauro é meio judeu e meio católico. "Sou da tribo dos Cajus", brinca o cineasta com a designação sobre a mistura de católicos com judeus.

Nas suas lembranças mais fortes está o dia em que, num jogo decisivo do Bandeirante, alguém lhe perguntou: "Aquele ali não é seu pai?" Era. Vinha, silencioso, no banco da frente de um Fusca. Cao saiu correndo para casa. Naquela corrida surgia a inspiração para uma imagem que, só quase quatro décadas depois, acabaria nas telas para contar uma história em uma cidade feita de exílios.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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