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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
08/11/2004
São Paulo é das mulheres. Menos de Marta

De cada 100 novos empregos na cidade de São Paulo, 70 são ocupados por mulheres, quase todas com diploma de ensino superior ou médio.

Persistem disparidades salariais entre homens e mulheres. As recentes estatísticas, porém, indicam redução dessa diferença. Enfrentando preconceitos, vão assumindo cargos de chefia, normalmente dominados por homens.

Elas são maioria não só no ensino médio e superior mas também nos cursos de pós-graduação. As notas dos alunos nas universidades públicas indicam que o desempenho delas é superior ao dos homens.

São a maioria do eleitorado, o que significa poder direto de voto. Isso sem contar a influência que exercem sobre os filhos e maridos -influência comprovada nas mais recentes pesquisas de avaliação de mudança dos padrões de consumo.

Esses fatos são ingredientes do enigma de Marta, que consiste no seguinte: como uma candidata tão bem avaliada administrativamente, apoiada pelo governo federal (também bem avaliado), montada em muito dinheiro de campanha, disputando a prefeitura de uma cidade em que as mulheres mandam cada vez mais, perdeu a eleição?

O enigma não se refere apenas a São Paulo, mas a todo o país e servirá também para orientar a próxima sucessão presidencial.

Quando os ânimos serenarem e houver maior distanciamento, aposto que vamos concluir que, entre as várias explicações, está o fato óbvio de que Marta Suplicy apanhou por todos os seus erros (excesso de taxas e má gestão na saúde, por exemplo) e pelos acertos na campanha de seu adversário, mas sobretudo por não saber escutar. A dificuldade de ouvir, embalada pela presunção da vitória, fez que dividisse o mundo entre aliados e inimigos; em muitos casos, entre bajuladores e críticos. Essa soberba tornou mais difícil para a prefeita lidar com o preconceito contra as mulheres, do qual também foi vítima.

Não escutou a classe média, que, como se vê agora, foi a peça-chave das eleições paulistanas -muito mais do que a periferia ou os milionários.

Na semana passada, a assessoria mais próxima da prefeita lançou a tese de que Marta perdeu por causa da sua vida conjugal. E, no caso, a culpa seria de Eduardo Suplicy, que, ao "posar de vítima" por tanto tempo, teria transmitido a impressão de que ela é insensível, cruel até. Estaria aí a gênese da imagem de arrogância.

A versão, destinada a encontrar os culpados pela derrota, é obviamente um ridículo exagero. Volto a dizer, porém, que, ao se separar, ainda mais de um político de prestígio, Marta aguçou preconceitos. Fosse um homem que se separasse nessa condição, haveria também reação, mas provavelmente não na mesma proporção.

A disposição de enfrentar brigas falando duro poderia ter sido encarada como sinal de coragem, de ousadia, a serviço do interesse público. Mas, para muitos, reforçou a imagem de arrogância. Por quê?

Para alguns segmentos da população, a mulher deveria ser mais delicada, ter um comportamento conformado, servil até. Aqui, entra uma dose de preconceito. Em certos momentos, houve mesmo coragem incompreendida. Mas quem acompanhou os bastidores do governo municipal viu como ela tropeçava nos limites entre franqueza e rispidez, autoridade e prepotência, determinação e falta de educação, coragem e impulsividade.

Parecia alternar o papel da mulher rica disposta a resgatar a periferia desolada, onde fez mesmo ações interessantes, algumas das quais históricas, com o da mulher afetada da elite paulistana, que não gosta de ser contrariada e reage impulsivamente. No jogo de imagens, é como se fosse uma mesma moeda: de um lado, a aristocrata esclarecida na batalha contra a injustiça social e, de outro, a patroa irascível brigando com a empregada.

Como a derrota vai diminuir o número de bajuladores, talvez Marta tenha condições de fazer uma reflexão solitária. Talvez perceba que, se tivesse sabido escutar mais e melhor, gastando mais tempo para explicar com mais paciência sua administração, ouvindo com mais respeito as críticas, os preconceitos, ainda que continuassem pesando, pesariam muito menos.

Para seu azar, pegou pela frente Serra, que, além de ter uma imagem positiva e ser apoiado por um governador também com boa imagem, apanhou tanto por ter escutado que descobriu o pragmatismo da humildade. Ele aprendeu, por exemplo, que a sua crônica impontualidade era vista como sinal de soberba, de desrespeito, e não de desligamento. Se vai continuar assim, vamos ver.

A derrota é passado e Marta ainda tem um futuro político pela frente. Se passar por um banho de auto-análise, vai sair dessa melhor do que entrou. Do contrário, vai continuar sendo vítima de si própria -e, como uma pessoa imatura, achando que a culpa é só dos outros.

PS - Lições do enigma Marta para as próximas eleições. Os candidatos terão de apresentar uma boa agenda para o público feminino -e Serra, com o tema saúde, fez isso. Terão de saber conversar com a classe média, cada vez maior devido ao aumento da escolaridade. Por ser filho de imigrantes que trabalharam na feira, ex-aluno de escola pública que entrou na faculdade, Serra conseguiu se identificar com esse segmento metropolitano. Ele tem muito mais a cara de São Paulo, onde quase todos são imigrantes ou migrantes (ou filhos deles) do que um mulher que ostenta -na fala, nas roupas e nos trejeitos- o Jardim América. A classe média arredia é parte da explicação do mistério Marta -e, quem sabe, o desafio do PT se quiser reeleger Lula.



Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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