REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

folha de s.paulo
15/12/2008

O fim de uma epidemia

A diminuição da violência, uma das preocupações do brasileiro, é uma importante mudança de realidade social

Está em andamento uma contagem regressiva para saber se, até o dia 31 deste mês, São Paulo vai conseguir tirar o assassinato da condição de epidemia, segundo os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS).

É quase nada o que falta, daí que talvez possa ser atingida a meta nos próximos dias.

Para a violência não ser chamada de epidêmica, o limite tolerado é de 10 assassinatos por 100 mil habitantes. São Paulo tem, neste momento, 10,06 (a capital 11,26), uma tendência iniciada em 1999. Só neste ano, em comparação a 2007, a redução na cidade de São Paulo foi de 20,6%, o dobro da queda estadual.
Por esse ritmo, o Estado e a capital terão, nos próximos meses, uma taxa de homicídios de apenas um dígito. A tradução disso é que, mesmo nas ingovernáveis regiões metropolitanas, se conseguirá reduzir com certa rapidez a violência -e sem mudar muito as condições socioeconômicas.

É uma das mais importantes mudanças de nossa realidade social, levando em conta que a violência está sempre entre as três principais preocupações dos brasileiros; está, aliás, acima do desemprego.

Como se viu nas notícias e nos comentários durante a comemoração, na quarta-feira passada, dos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, a polícia ainda é acusada de arbitrariedades. O desrespeito aos direitos é um dos reflexos do desejo da população de passar por cima da lei em nome da segurança. Uma pesquisa da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência, divulgada na quinta-feira, indicou que 43% dos brasileiros concordam, em diferentes graus, com a frase "bandido bom é bandido morto".

Seria uma tolice negar as arbitrariedades, mas é uma simplificação grosseira reduzir os números de São Paulo à barbárie policial -a campanha contra o desarmamento começou na sociedade civil. A inevitável saída da condição de epidemia é o resultado de um complexo arranjo das mais diferentes forças dentro e fora dos governos.

Um exemplo desse arranjo ocorreu na sexta-feira passada. O comando da Polícia Militar estava reunido com as mais diversas lideranças da cidade, entre as quais lideranças empresariais, além dos principais secretários estaduais e municipais ligados a questões sociais.

Discutiu-se a plataforma desenhada pelo Unicef, com execução do Sou da Paz, para criar, nas comunidades, redes de proteção para crianças e adolescentes. O projeto estabelece metas de médio e longo prazo, assinadas em documento pelo prefeito.
Esse tipo de encontro é apenas a tradução de algo fácil de falar e difícil de fazer: a melhor segurança é a preventiva. E começa na prevenção da violência dentro de casa, buscando aliados nas famílias e nas escolas.

Se a cidade de São Paulo conseguiu um feito e tanto reduzindo, neste ano, sua taxa de assassinato em 20%, imagine então a importância do que aconteceu na zona norte da cidade (Brasilândia), onde moram aproximadamente 300 mil pessoas. Vamos ao número: redução de 63% dos homicídios.

A operação começou no Jardim Elisa Maria, famoso pelas chacinas em série, estendendo-se para outros bairros. Foram realizadas 53 ações de várias secretarias; não havia registro, até então, de tantas e tão diferentes entidades públicas trabalhando com foco num único bairro.

Construíram-se praças, uma escola, uma base de policiamento comunitário -a PM oferece, por exemplo, um programa de esportes. Um dos moradores montou uma escolinha de futebol. A segurança é discutida num comitê com moradores.

O que se vê na segurança traz algum alento para uma calamidade anunciada, mais uma vez, na semana passada -os avanços em São Paulo ainda estão muito distantes de uma meta aceitável. Saiu a análise do movimento Todos pela Educação, liderado por empresários, sobre o ensino público, a partir de objetivos traçados há dois anos. A novidade não é o fato de que os jovens se formam no ensino médio sem ler direito, mas que existem metas que são acompanhadas e cobradas pela sociedade. Entre as boas novidades que temos no país estão empresários falando em educação pública -até mais do que sindicalistas, cujos filhos estão numa escola municipal ou estadual.

Estamos repletos de más notícias -e sabemos que vão piorar. Quem sabe até a crise econômica, aumentando em algum nível a exclusão, torne ainda mais difícil melhorar a segurança. Não podemos nos sentir seguros: caíram as mortes, mas continua gigantesca a incidência de roubos e furtos. Mas o fim de um rótulo de epidemia, mesmo que demore mais alguns meses, merece um brinde de final de ano.

p.s.: outro motivo de comemoração (e tem tudo a ver com a criação de metas e redes de responsabilidade) foi a aprovação, na semana passada, na Assembléia Legislativa de São Paulo, de um bônus aos servidores das escolas condicionado ao desempenho dos alunos. É, de longe, a maior inovação administrativa de José Serra.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
09/12/2008 Cérebro de pobre funciona pior?
08/12/2008
Brincar faz bem à saúde
03/12/2008 Desejos de madeira
02/12/2008 Milagre dos fotógrafos cegos
01/12/2008
O prazer dos fotógrafos cegos
25/11/2008
O céu de Kassab
25/11/2008
Bairro do futuro está numa favela
19/11/2008
O cemitério da fama
18/11/2008
Obama e a ex-futura prostituta de Brasília
17/11/2008 As filhas de Obama e o professor de rua
Mais colunas