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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
18/10/2004
Camisinha de cérebro

Nos primeiros seis meses deste ano, na cidade de São Paulo, a cada dia, em média, duas meninas de menos de 14 anos se tornaram mães. Na faixa dos 15 a 19 anos, a média diária sobe para 79 casos. Documentos oficiais revelam que a situação se mantém praticamente inalterada pelo menos desde 2001.

Em apenas seis anos, nascerão pouco menos de 200 mil crianças filhas de mães adolescentes e quase sempre pobres. A maioria dessas meninas terá, em média, três filhos.

Num fenômeno nacional, garotas tornadas mães tão jovens, ainda quase pré-adolescentes, são a faceta mais evidente de uma tragédia cujo antídoto, oferecido na semana passada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, é a distribuição em massa de camisinhas -solução bem-intencionada, mas provavelmente inútil.

Numa perversa assimetria, é visível no mapa de São Paulo que as mulheres mais ricas e mais velhas se limitam a ter um filho (isso para não atrapalhar os estudos e a profissão), enquanto, em bairros da periferia, de cada 1.000 adolescentes de 15 a 19 anos, cerca de 70 têm um filho por ano. Para comparar, tome-se uma região como Pinheiros, utilizando como referência a mesma idade de adolescentes: a proporção cai de 70 para 10 a cada mil.

Mães com muitos filhos, exigência crescente de qualificação da mão-de-obra, escolas públicas ruins, desemprego, baixos salários e falta de estrutura familiar -fatores que concorrem para perpetuar a má distribuição de renda- são alguns dos ingredientes da criminalidade.

Curiosamente, entretanto, o tema quase não foi mencionado durante a campanha eleitoral na cidade de São Paulo, na qual se digladiam a sexóloga Marta Suplicy e José Serra, ex-ministro da Saúde. Mais curioso ainda é o fato de ambos terem posto no topo de sua agenda a preocupação com a educação e a saúde, dois dos principais temas ligados ao excesso de filhos de mulheres mais pobres.

O estrago da maternidade precoce pode ser avaliado com base nos resultados de uma pesquisa (divulgada na quarta-feira) que aparentemente nada tem a ver com o assunto. A Prefeitura de São Paulo lançou estudo mostrando que, de cada 10 empregos novos criados na cidade, quase 7 são ocupados por mulheres de idade entre 18 e 24 anos que completaram, no mínimo, o ensino médio e, na maior parte das vezes, uma faculdade. Dificilmente uma mulher consegue chegar a esse grau de escolaridade tendo sido mãe muito jovem.

Resultado: há batalhões de indivíduos que, mesmo num ambiente de crescimento econômico, terão dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Estão condenados a viver na marginalidade, dependendo de verbas oficiais ou engrossando as fileiras do crime. Lembre-se de que, no Brasil, nasce anualmente 1 milhão de filhos de adolescentes.

Diante dessas devastadoras conseqüências, a solução mais fácil e tentadora é
distribuir mais camisinhas ou pílulas.

O acesso a métodos contraceptivos é indispensável, mas quem acompanha projetos que trabalham com adolescentes sabe que a questão é mais complexa: a carência crônica faz com a que as jovens, apesar da falta de recursos, vejam no filho não um problema, mas uma solução.

Mais do que uma solução, uma perspectiva. Logo vão descobrir, porém, que nem sequer encontraram um projeto de vida e muitas vezes terão jogado no mundo seres humanos que terão mais dificuldade de ter perspectiva.

Educadores aprenderam que a base do planejamento familiar é o projeto de vida, é a capacidade de detectar os próprios potenciais e de acreditar na possibilidade de transformá-los em habilidades. A realização se dá em vários níveis, além da maternidade.

Quem tem projeto de vida acredita em si próprio porque se respeita. Isso significa tanto se esforçar para estudar ou batalhar um emprego como preservar o próprio corpo.

Se quiser, de fato, enfrentar a pobreza, o prefeito da próxima gestão terá de transformar os centros de saúde e as escolas em espaços não apenas de educação para a vida mas de educação na vida.

Evitar a gravidez precoce ou proteger-se contra doenças sexualmente transmissíveis é somente uma conseqüência da atitude de quem se valoriza no presente e aposta no futuro -e, assim, acaba aprendendo que a melhor camisinha está no cérebro, e não na genitália.

PS - Nesse tópico, há de ser feito reconhecimento à Secretaria da Saúde da Prefeitura de São Paulo, que realizou programas sobre questões reprodutivas. A taxa de gravidez na juventude é alta, indecente até, mas, diferentemente da tendência nacional, não subiu, o que já é alguma coisa. A rede básica de saúde recebeu material educativo sobre planejamento familiar. Apesar de ainda insuficiente, aumentou (e muito) a distribuição de camisinhas -houve um salto de 866 mil unidades para mais 4,3 milhões; cartelas de pílulas anticoncepcionais foram de 28 mil para 1,3 milhão. O DIU não era oferecido, agora são 12 mil unidades aplicadas por ano. Não havia nos postos a chamada pílula do dia seguinte (levonorgestrel), agora são distribuídos 3.215 comprimidos por ano.

 

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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