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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
27/02/2006
O bloco dos cidadãos invisíveis

Há uma lista de 200 estudantes, alguns deles do ensino privado, aguardando vaga numa escola pública na zona norte de São Paulo; pais recorrem a políticos para tentar matricular seus filhos e furar a fila. É uma lista surpreendente.

Até pouco tempo atrás, a escola era apelidada de "maloquinha". Seus professores tinham medo dos alunos, traficantes circulavam sem constrangimentos e as brigas faziam parte da rotina. Viam-se sinais de abandono por todos os lados: muros pichados, vidros danificados, portas com marcas de arrombamento, banheiros quebrados e infiltração nas paredes.

A explicação para essa mudança poderia ser encontrada, neste final de semana, mais precisamente a partir das 22h45 do sábado, quando um grupo de alunos da Comandante Garcia D'Ávila, a ex-maloquinha, entrasse no sambódromo para desfilar num bloco da Unidos do Peruche.

A operação que levou a maloquinha a virar ex-maloquinha é especialmente relevante por causa da informação, divulgada na semana passada, sobre um dos maiores problemas brasileiros, talvez a nossa maior bomba social: 27% dos jovens entre 15 e 24 anos de oito regiões metropolitanas não estudam nem trabalham. Traduzindo: 1,7 milhão de indivíduos, no auge do vigor físico, que integram o bloco da juventude invisível socialmente. Vítimas do desemprego e da precária escolaridade, vivem entre o desespero, a frustração e o ressentimento, servindo de mão-de-obra para o crime organizado e de ponto nas estatísticas de violência.

Justamente por isso experiências como a da ex-maloquinha vão bem além do Carnaval. Comandados pelo professor Waldir Romero, educadores da Garcia D'Ávila apelaram para o que imaginavam ser a única solução contra a selvageria que os atacava. Bateram às portas dos grupos carnavalescos da zona norte, entre os quais a Unidos do Peruche. Pediram-lhes que realizassem ensaios na escola. Entre os grupos que aderiram, estava a Gaviões da Fiel, da torcida do Corinthians.
Rapidamente, criou-se o respeito dos alunos e as gangues foram, aos poucos, se afastando. As famílias se aproximaram e usaram a escola para realizar batizados, aniversários e casamentos.

Juntou-se às matérias tradicionais o samba, mesclando aulas de português e história às letras das músicas e ao enredo. Exemplo: o tema deste Carnaval da Unidos do Peruche é Santos Dumont. Usou-se o pai da aviação, em sala de aula, como eixo transversal para discutir diferentes matérias, além da importância do sonho e da imaginação. Para desenvolver o empreendedorismo, os estudantes são convidados a montar um desfile de verdade. Oferecem-se atividades extracurriculares realizadas nas quadras das escolas de samba.

Pela primeira vez, neste ano os alunos desenharam e costuraram suas próprias fantasias -alguns deles disputaram o concurso para a escolha da letra-, para desfilar na avenida, batizados de "ala do Garcia"."

Não se vai resolver a questão da marginalidade juvenil apenas com sacadas deste tipo. Enquanto o Brasil estiver crescendo tão pouco, seremos sempre um campo minado. Essa é uma das traduções, a pior delas, para o crescimento do PIB de 2,5% anunciado na sexta-feira.

Mas, aliado ao esforço de crescimento econômico e de distribuição de renda, é inevitável a transformação da escola no principal elo de articulação das famílias, da comunidade e do poder público. Daí que tenho insistido na idéia de que devemos formar professores comunitários para fazer essa articulação, na qual crianças e jovens sintam-se respeitadas e, portanto, visíveis.

No caso da ex-maloquinha, o samba significou, sem maiores discursos, um sinal de respeito. Talvez pudesse ser ópera, balé, hip hop, futebol, dança, qualquer coisa que estabelecesse uma relação afetiva e produtiva entre o indivíduo e o mundo.

Qualquer candidato a governador e presidente estará desqualificado se não tiver montado uma estratégia para enfrentar a marginalidade juvenil. Não há nada que destrua tantas perspectivas de vida, desperdice recursos humanos e ameace mais a insegurança de toda uma nação dos que os milhões de seres que não estudam nem trabalham. E, por não se sentirem ligados a nada, imaginam-se com pouco a perder.

P.S. - Por falar em invisibilidade, uma experiência brasileira foi premiada neste ano pela ONU -outro caso que vale a pena ser estudado. Em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo, criou-se a figura do "professor visitador". O professor que vai à casa da família de seus alunos ganha um acréscimo em seu salário. No final, o dinheiro foi o menos importante. As famílias, sentindo-se valorizadas com a visita, passaram a ajudar a escola, o que se refletiu na atitude e no aprendizado dos estudantes. Mais uma vez, apenas um toque de visibilidade para gerar a sensação de pertencimento.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

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