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REFLEXÃO

A flexibilização das leis trabalhistas trará benefícios aos trabalhadores?

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folha de s.paulo
29/09/2003
O jeito mais rápido de virar patrão é perder o emprego

Enquanto os políticos e sindicalistas garantem que não haverá alteração nos direitos trabalhistas, patrões e empregados dão as costas para as formalidades legais, desdenham os debates oficiais e produzem uma revolução.

Essa revolução chega a tal ponto que estamos nos tornando, por mais exótico que pareça, um país de patrões, como se pôde ver em estatísticas oficiais divulgadas na semana passada. Anualmente, centenas de milhares de brasileiros decidem abrir sua própria empresa.

Falar em centenas de milhares pode parecer exagero, mas é exatamente isso - o que reflete as mudanças profundas e irreversíveis nas regras do mercado de trabalho.

De acordo com o IBGE, em 2000 havia 5,6 milhões de proprietários de empresas. No ano seguinte, esse número pulou para 6,14 milhões. Em apenas 12 meses, 461 mil brasileiros, número de pessoas equivalente à lotação de cinco estádios do Maracanã, abriram uma empresa. Mesmo que sejam patrões de si próprios (ou, se preferir, empregados de si mesmos), são tratados legalmente como patrões.

Em essência, há pouca diferença entre a maioria dos novos patrões e os empregados informais - sem nenhuma proteção, estão todos buscando garantir um rendimento, mesmo à custa de menos benefícios. Há pelo menos duas explicações para a explosão do número de firmas: o empregador e o empregado consideram conveniente o contrato de prestação de serviços por aliviar a carga de impostos e o indivíduo ficou desocupado e só consegue se inserir no mercado se abrir mão da carteira assinada, como um eterno free-lancer. Esse é, na visão dos especialistas, o trabalhador do futuro, contratado provisoriamente.

Para os políticos e sindicalistas, faz todo o sentido dizer que flexibilizar a legislação precariza o mercado de trabalho -até porque é verdade. E até porque seu emprego depende, pelo menos em parte, desse discurso.

Mas, para quem tem de optar entre nenhum emprego e um emprego sem nenhum benefício, a flexibilidade é apenas uma questão de sobrevivência.

Essa opção foi visível - e coloquemos visível nisso - mais uma vez na semana passada, exposta no índice de desemprego. Segundo o IBGE, o número de trabalhadores com carteira assinada em agosto permaneceu estável em relação ao mesmo mês do ano passado. Ou seja, estancou. Já o número dos informais cresceu 7% e foi o que salvou o desemprego de uma calamidade ainda maior. "A flexibilização do trabalho já está ocorrendo, mas de forma selvagem", analisa o economista José Márcio Camargo.

Temos a seguinte situação paralisante: prega-se um ideal de legislação, mas a sociedade vai para outro caminho -e vai pior do que se houvesse uma flexibilização negociada.

Os sinais, até agora, indicam que Lula, que já está brigando com funcionários públicos por causa da Previdência, não pretende, pelo menos neste ano, patrocinar mais polêmicas com sua base de sustentação social. "Não somos a favor do trabalho escravo", diz o ministro Jaques Wagner, que, numa entrevista neste ano, ao apenas insinuar mudanças, levou pancadas da CUT e reviu suas reflexões.

Diante das propostas de flexibilização - por exemplo, parcelamento do 13º salário -, sindicalistas, estáveis, estufam o peito e dizem: "Não podemos criar trabalhadores de segunda classe". Estão certos. Dessa maneira, criam-se mesmo os trabalhadores de segunda classe.

Mas, com ou sem lei, estão surgindo o que o professor José Pastore, especialista em relações trabalhistas, chama de os "desclassificados" - os trabalhadores sem nenhum direito, sem nenhuma classe.

Além do problema individual, existe a desproteção coletiva. Esses trabalhadores não têm direitos, mas têm despesas. Se ficam doentes, acabam no sistema público de saúde. Quando se aposentarem e forem miseráveis, poderão obter uma renda mínima.

No final das contas, é cada vez menos gente para bancar mais quem vive na informalidade ou sonega. Com isso, é mais difícil ainda reduzir a carga de impostos para fazer o país crescer - e gerar mais empregos.

Diante de uma situação inusitada, em que se produzem, em igual velocidade, patrões e trabalhadores clandestinos, é preciso criar soluções que quebrem o discurso fácil dos políticos e sindicalistas e lançar soluções inovadoras -e, claro, corajosas.

PS - Como sempre ocorre, os excluídos estão fora desse debate. Falam apenas os políticos e os representantes dos sindicatos patronais e de empregados. O sujeito obrigado a aceitar qualquer trabalho precário simplesmente não é ouvido. Manda o bom senso que se criem alternativas para os pequenos e microempresários, que não conseguem bancar o custo da folha, mas não querem viver na marginalidade.

Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos.