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A democracia em perigo - 03.out.93 (Caravana da Cidadania)

Nas caravanas que tenho feito pelo país, depois de percorrer de ônibus mais de 9.000 quilômetros, atravessando dez Estados e parando em mais de cem cidades, o que mais me chamou a atenção foi a incrível distância que separa as aspirações de um povo que quer trabalhar, apenas viver de forma humilde, mas decente, das discussões que envolvem a maior parte da elite brasileira, viúva da modernidade collorida.

A pauta oficial do governo, do Congresso Nacional e de grande parte da mídia afasta-se perigosamente da realidade vivida pela maioria da nossa população.

Fico a me perguntar como é que pode funcionar a cabeça de um povo que não entende metade das coisas que a elite discute e só está pensando em sobreviver. Quando falamos de democracia ­na derrubada do regime militar, na Constituição de 1988, no impeachment do Collor e, agora, na revisão constitucional­ parece que usamos outra língua, uma linguagem que já não sensibiliza os ouvidos e a alma de gente que só sabe de uma coisa: a sobrevivência está cada vez mais difícil, dolorosa.

É que a palavra democracia quer dizer tão pouco para quem não tem trabalho e passa fome que, ou nós assumimos a responsabilidade de fazer a democracia chegar até esse povo, ou a democracia não terá nenhum valor ­e estará, mais uma vez, correndo perigo.

Se, para alguns, democracia é ter liberdade de expressão, liberdade sindical, liberdade de organização partidária, liberdade para ter acesso aos bens culturais, para a grande maioria do povo brasileiro democracia significa ter direito à vida, significa trabalhar, ganhar um salário digno, ter direito à educação e à saúde, ou seja, significa não apenas a democracia institucional, mas, sobretudo, a democracia econômica.

Não basta dizer que todos somos iguais perante a lei se só quem vai preso é o pobre (no caso Collor-PC, só a secretária e o piloto).

Não basta a Constituição garantir que todo mundo tem direito a ganhar um salário, ter moradia e tudo mais, se o salário mínimo é incompatível com os princípios definidos no texto constitucional.

Não basta criar um Estatuto do Criança e do Adolescente sem criar ao mesmo tempo as condições econômicas para que possa ser cumprido. Não se pode pensar em substituir as oportunidades necessárias para os deserdados deste país se transformarem em cidadãos colocando o Exército nas ruas.

É preciso que os dirigentes deste país, que as pessoas com consciência política parem de discutir seus interesses específicos para que possamos discutir os interesses da Nação e da maioria do povo sofrido.

É preciso fazer este país voltar a crescer com distribuição de renda; elaborar uma política agrícola com créditos subsidiados para o pequeno e médio produtor; ter uma política de reforma agrária, com assistência técnica e garantia de escomento da produção e preçoi mínimos.

É preciso implantar uma política industrial, incentivando a produção de bens de consumo popular; investir na educação e na saúde, garantindo às pessoas café da manhã, almoço e janta, água potável e saneamento básico.

É preciso, senhores dirigentes, lembrar que, enquanto o Congresso Nacional e o Poder Executivo brigam por cargos, enquanto a elite brasileira joga tudo para fazer uma revisão constitucional e enquanto o ministro da Fazenda só se preocupa com os cofres do Tesouro Nacional, 32 milhões de brasileiros em estado de miséria absoluta esperam que a democracia chegue até eles.

Nas viagens que fiz este ano, vi na face dessa gente carcomida pela fome um olhar de esperança, de fé no Brasil e o desejo de voltar a ter orgulho de ser brasileiro.

A hora é agora. Ou garantimos o direito à cidadania, conquistando a democracia plena, ou a democracia será ainda uma ilusão e não significará nada para dois terços do povo brasileiro.

Quando se fala de boca cheia que o mercado deve regular a economia é preciso saber que, primeiro, há que se criar este mercado, multiplicando e democratizando as oportunidades.

Para que isso aconteça, é necessário, antes de tudo, tirar a pauta oficial do Brasil dos gabinetes, dos lobbies, das corporações e da mídia e trazê-la para o cotidiano das ruas, dos becos das favelas, dos fundos de pasto do Brasil real, que fala outra língua, tem outras aspirações e só é lembrado nos momentos de tragédia, das chacinas que se tornaram rotina.

A verdade é que nossos dirigentes, estes eternos donos do poder que não largam o osso desde Pedro Alvares Cabral, não conhecem o Brasil. Por isso, nos criticam tanto. Vamos fazer outras caravanas, quantas forem necessárias para termos uma radiografia completa do Brasil real e, a partir dela, construir um projeto nacional, antes que as pessoas comecem a duvidar que a democracia é a única forma de conquistarmos a cidadania para 150 milhões de brasileiros.


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