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Velha desculpa contra a reforma agrária - 02.jun.96 (Reforma Agrária)

A Folha defendeu em editorial de primeira página, em 21/5 último, uma reforma agrária pela via fiscal "taxando-se, de forma confiscatória, a propriedade improdutiva ao país". E conclui que "não faz mais sentido, no Brasil de hoje, voltar a palavras de ordem de 50 anos atrás. (...) É preciso tratar a questão agrária sob uma ótica moderna".

Ora, nada mais arcaico do que a proposta de fazer a reforma agrária pela via da tributação. Recentemente, no Seminário Internacional sobre Reforma Agrária e Agricultura Familiar, realizado pela Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados, com apoio da FAO, em Brasília, de 28 a 30 de novembro, o economista sênior do Banco Mundial no Brasil, Hans Binswanger, declarou em alto e bom som que isso vem sendo tentado há décadas, em vários países da América Latina, sem nenhum sucesso.

De fato, desde a promulgação do Estatuto da Terra, em 1964, o Brasil tentou o caminho da tributação como paliativo para evitar a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Até mesmo o ex-ministro Roberto Campos, um dos ideólogos dessa via fiscal, reconheceu recentemente no seu livro "Lanterna na Popa" que foi um erro imaginar que a tributação progressiva poderia ser um remédio eficaz para impedir o latifúndio improdutivo no país.

E por que a tributação da terra não funciona? A resposta é simples: pela força que os proprietários rurais têm no Congresso. Nos países latino-americanos nossos vizinhos, um ano se perdoa o imposto porque choveu, no outro, porque não choveu.

No Brasil, nem mesmo essa justificativa é preciso: neste ano de 1996, a Receita Federal adiou indefinidamente o recolhimento do ITR que deveria ter sido pago até abril.

O resultado de mais esse perdão já é visível: nos tributos arrecadados pelo governo federal, de janeiro a abril de 1996, o valor do ITR era de apenas R$ 54,3 milhões, ou seja, menos de 0,2% do valor total.

A título de comparação, o IPI sobre fumo arrecadou no mesmo período R$ 931,8 milhões, ou seja, 17 vezes mais; e o Imposto de Renda retido na fonte dos rendimentos do trabalho _aquele valor que o governo desconta dos nossos salários todo mês_ arrecadou R$ 3,309 bilhões, ou seja, mais de 60 vezes o valor do imposto pago pelos proprietários rurais em todo o país até aquela data.

Na verdade, o valor arrecadado pelo ITR nunca foi significativo neste país. E não foi por falta de mudar a lei: quase todos os governos depois de 1964 tentaram introduzir "aperfeiçoamentos" no ITR.

De 1990 para cá, houve mudança praticamente todos os anos na sistemática de sua cobrança. E o resultado foi sempre o mesmo: o índice de evasão ultrapassa 90% para os grandes proprietários. Eles simplesmente não pagam o ITR na esperança (que, ultimamente, com a atuação da bancada ruralista, virou certeza) de que serão perdoados mais à frente; ou simplesmente à espera de que a dívida prescreva um dia por falta de qualquer ação de cobrança por parte do poder público.

Nós não temos nada contra o ITR. Pelo contrário, achamos que ele deve ser cobrado como um imposto sobre o patrimônio, como se fosse um IPTU, levando em consideração as melhorias introduzidas pelo poder público para valorizar aquele determinado imóvel.

Por que o trabalhador urbano pode pagar R$ 40 por metro quadrado de sua casinha na cidade e um grande proprietário de terras não pode pagar R$ 50 por hectare, que equivale a 10 mil metros quadrados?

Mas querer fazer reforma agrária pela via fiscal é como querer fazer omelete sem quebrar os ovos. No Brasil, pela dimensão que assume a questão fundiária, nada pode substituir o instrumento de desapropriação por interesse social como forma de arrecadação de terras improdutivas para se fazer a reforma agrária. E pagar em Títulos da Dívida Agrária, como manda a nossa Constituição, porque, se for para pagar em dinheiro, não é reforma agrária, é maracutaia na certa.

COM: José Graziano da Silva, 46, é professor titular de economia agrícola da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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