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As duas faces do real - 01.jul.96 (Plano Real)

Uma vez perguntaram ao presidente Médici, em pleno auge do "milagre", o que ele achava da situação do país. Num arroubo de sinceridade, respondeu que a economia ia bem, mas o povo ia mal. Os anos passaram, a ditadura caiu e o PIB mais que dobrou.

Porém hoje as coisas não se modificaram muito, pelo menos para a base da pirâmide social brasileira. A inflação de 1996 é bastante parecida com a de 1973, que andava por volta dos 20% anuais. No entanto a grande maioria da população permanece excluída da riqueza e amargando péssimas condições de saúde, educação, habitação, segurança e, agora, até falta de emprego.

Dois anos e meio depois de sua implantação, o Plano Real conseguiu segurar a inflação num patamar aceitável. Entretanto não deu uma resposta satisfatória para os problemas socioeconômicos do país. Sua principal deficiência reside no fato de que se resume a um plano de estabilização e não contempla um projeto de desenvolvimento. Não é, por exemplo, como o Plano de Metas de Juscelino, que possuía um programa de crescimento para os diversos segmentos econômicos.

O programa de governo do candidato Fernando Henrique Cardoso mencionava a melhoria das condições de vida da população. Porém não consegue realizá-lo sem um projeto de desenvolvimento que aumente a riqueza e o emprego. Não é possível aumentar o nível de emprego se o governo estimula a canibalização industrial com taxas de juros elevadas e um câmbio desfavorável para os produtores brasileiros.

O empresário brasileiro prefere hoje importar matérias-primas e mesmo produtos acabados do exterior, aproveitando as taxas de juros que lhes são oferecidas pelos fornecedores estrangeiros, de 8% a 10% ao ano, com 180 dias para pagar, do que enfrentar as taxas de juros de 25% a 30% do mercado brasileiro.

Só por esse motivo as mercadorias estrangeiras ficam 20% mais baratas que as nacionais. Alguns empresários, mesmo de empresas exemplares como a Metal Leve, estão preferindo vender seus negócios a continuar se defrontando com essas condições adversas.

Inequivocamente, na sua primeira fase, o Plano Real produziu um alívio para a população ao reduzir o imposto inflacionário e eliminar a aflição de correr atrás dos preços, que se modificavam quase todo dia. A confiança na nova moeda, os cheques pré-datados e a ampliação do nível de endividamento permitiram um considerável aumento do consumo de supérfluos.

Mesmo uma parte das famílias de baixa renda teve acesso ao maravilhoso mundo das compras de eletrodomésticos e a um sem-número de quinquilharias trazidas do exterior. Somente em 1995, foram vendidos 6 milhões de televisores em cores e 2 milhões de videocassetes. Mas a euforia durou pouco. Já em março de 1995, diante do déficit comercial, o governo puxou o freio e jogou o país na recessão.

Apesar da queda do emprego, o consumo de eletrodomésticos ainda continuou elevado. Entretanto nenhum dos problemas básicos foi resolvido. Muito pelo contrário, os aluguéis subiram barbaramente, jogando milhares de famílias para debaixo das pontes.

Os mais aquinhoados correram atrás dos planos de saúde e das escolas privadas para fugir da degradação do atendimento público. A criminalidade aumentou em toda parte, mesmo no campo, onde os pequenos produtores amargam a falta de assistência, e os milhares de sem-terra esperam impacientemente pelos assentamentos prometidos.

Hoje, um ano e meio depois do começo do governo Fernando Henrique, o salário médio dos trabalhadores já é menor do que aquele que vigorava em 1º de janeiro de 1994, enquanto o desemprego caminha a passos largos.

No primeiro semestre de 1996, foi registrado um volume inédito de falências, concordatas e cheques sem fundo emitidos pelo país. A dívida interna já atingiu, em maio, a fantástica cifra de R$ 151 bilhões, devendo chegar até o fim do ano a mais de R$ 200 bilhões, quatro vezes maior do que era no início deste governo. E os juros pagos em cima dela (mais de R$ 20 bilhões em 1995) continuarão causando déficits orçamentários e ocupando o lugar dos gastos sociais.

Curiosamente, agora que se aproximam as eleições municipais, o governo resolveu afrouxar o crédito para promover algum aquecimento da economia. Será o abandono da estratégia econômica recessiva (como, sem mexer no câmbio e outros itens importantes?) ou apenas mais uma manobra eleitoral para melhorar a situação dos candidatos governistas?

COM: Guido Mantega, 47, é professor de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP) e autor do livro ’’A Economia Política Brasileira’’. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Planejamento do Município de São Paulo (gestão Luiza Erundina).


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