Folha de S.Paulo Moda
* número 19 * ano 5 * terça-feira, 31 de outubro de 2006
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moda / calor

Moda em chamas

Aquecimento global obriga indústria a adaptar o guarda-roupa do planeta fashion

por Carol Vasone


Imagem do sol captada pela Nasa

Garota: abotoe seu microvestido! Godê ou trapézio, use-o leve e solto. Garoto: adote as bermudas! Com camisa, no cinema, para ir a festas, em todos os horários. E se a sua faceta mais conservadora tentar censurar a tendência abusada do próximo verão, não pense duas vezes: é o aquecimento global, não a sem-vergonhice, que te veste assim.

Tecidos levíssimos, modelagens confortáveis e generosos pedaços de corpo à mostra são algumas das estratégias da indústria do vestuário para driblar o calor provocado pelo fenômeno mundial que, além de derreter geleiras ao extremo Norte do planeta e esquentar o clima do globo, vem ditando mudanças consideráveis na moda.

No Brasil, o calor, que sempre foi dominante, ameaça transformar partes do país em sucursais do inferno durante o verão e arrastar as outras estações para o caldeirão. "Nos últimos seis anos tivemos não só verões, mas primaveras e invernos mais quentes. E a tendência, na maior parte do país, é que a temperatura aumente", afirma Franscisco de Assis Diniz, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), sediado em Brasília. O Inmet prevê que a temperatura no próximo verão fique entre 1º C e 2º C mais quente, como aconteceu em 2005 e em 2004 nas principais regiões brasileiras.

O aquecimento global, aliás, é tema de um filme que estréia em novembro no Brasil: "Uma Verdade Inconveniente", feito com o apoio do ex-vice-presidente norte-americano e atual ambientalista Al Gore. O filme mostra como interesses econômicos e políticos estão impedindo a criação de saídas e de paliativos ao problema. Enquanto soluções não acontecem, estilistas e marcas buscam um caminho para o calor impiedoso. "O fenômeno estimula uma moda mais leve e colorida. A roupa tem que ter frescor. Essa tendência está no mundo inteiro", acredita Clô Orozco, designer e dona da Huis Clos. "Hoje uso mais cores, acho que há uma obrigação de ser mais leve, mais alegre", diz.

A leveza vem tanto do conceito da coleção quanto do peso da matéria-prima. Fabricante e fornecedora de tecidos para mais de 3 mil marcas, a Santa Constancia tem investido, a pedido do mercado, em roupa que respira, que é agradável ao toque e que é consideravelmente "mais magra" em comparação com o passado. "Temos um tipo de supplex, por exemplo, que pesa menos da metade dos 300 gramas por m2 de um convencional", afirma José Favila, consultor têxtil da tecelagem. Além de mais suave, o tecido seca mais rapidamente e ainda pode ser considerado ecologicamente correto, salienta o consultor, já que, por ser mais fácil de lavar, gasta menos energia. "Fluyte", "legerissimo" _os nomes dos tecidos já anunciam seus propósitos, solicitados tanto no verão quanto no inverno. "O que muda de uma estação para a outra, basicamente, são as cores e as estampas", diz Fernanda Carvalho, gerente de comunicação da Santa Constância.

Não é apenas o verão que está mudando para a moda, mas sobretudo o inverno. Com fábrica própria e produção de cerca de 25 mil peças por coleção, a UMA – que desfila na São Paulo Fashion Week e conta com quatro lojas próprias – conhecida por suas roupas de frio, tem apostado, de dois anos para cá, em coleções cada vez mais atemporais. "Investimos nos tecidos naturais e nas sobreposições. Misturamos lã com outros materiais, como viscose, para que fique mais leve. Temos apenas uma linha pequena de roupas mais quentes, para a clientela que viaja", conta Raquel Davidowicz, estilista e dona da marca.

O frio estrangeiro também parece ser o único motivo para uma das maiores grifes do país, a Ellus, manter em sua produção peças como um trench-coat de lã. "Além de ser um clássico e vender bem, atende as necessidades do mercado externo", diz Adriana Bozon, diretora de criação da marca, que tem pelo menos 60 lojas e pontos de venda no Brasil e showrooms em países como França, Inglaterra e Espanha. "Mesmo no inverno, a Ellus faz vestidos de tecidos mais finos e usa algodão mais leve, como o egípcio", completa.

Sem a obrigação de criar uma coleção para ser apresentada numa semana de moda, marcas mais comerciais contam com outra estratégia. "Produzimos novas peças semanalmente, dependendo da temperatura. Contratamos até os serviços de meteorologia para tentar acompanhar as mudanças climáticas", afirma Mario Yokota, dono da Mercearia, marca criada há 18 anos, hoje com 15 lojas e 20 franquias no Brasil.

As mesmas manobras adotadas no Brasil podem ser vistas nas vitrines e nos looks dos consumidores europeus, que sentem de maneira ainda mais acentuada os efeitos do aquecimento global. "No hemisfério Norte, as estações tendem a ficar mais extremadas. Ou seja, o inverno cada vez mais frio, e o verão, mais quente", lembra o meteorologista do Inmet.

A reação fashion não é estatística, mas já pode ser observada nas ruas e vitrines européias. "Muitas lojas recebem estoque de novas mercadorias de poucas em poucas semanas", conta Bárbara Kennington, editora-chefe do WGSN (Worth Global Style Network), que realiza pesquisas de tendÍncia de moda e consumo nas principais cidades do mundo. "Não dá para fazer uma relação direta entre o aquecimento global e a maneira das pessoas se vestirem, mas é fato que nos últimos anos cresceu o uso de sobreposições, e na Europa já não temos essa sensação de que precisamos comprar um casaco ou uma bota", diz.

Nas passarelas, basta olhar as coleções para o próximo verão europeu, para constatar uma quase "tropicalização" da moda na Europa. Até tradicionais maisons, como a Chanel, sucumbiram ao poder de um dia quente, muito quente, e aderiram à pouca roupa, tão famosa do lado de baixo do Equador. Com a bênção de Karl Lagerfeld, as saias e os shorts curtÌssimos entraram para o time das peças elegantes _com uma boa produção, claro. E, se até o kaiser da moda, inspirado pelas mudanças climáticas, se convenceu de que calor foi feito para mostrar o corpo, por que justamente nós iríamos resistir ao movimento?


Suecas se refrescam em uma fonte durante onda de calor na Europa

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