Folha de S.Paulo Moda
* número 22 * ano 6 * sexta-feira, 6 de julho de 2007
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Castelbajac, o aristocrata da moda

Após 40 anos de carreira, o estilista apresenta "Gallierock", uma retrospectiva de seu trabalho, no museu Galliera de Paris

O estilista francês Jean-Charlse de Castelbajac

Não é de hoje que a moda se nutre de referências encontradas no universo da arte. Mas poucos estilistas conseguiram, como Jean-Charles de Castelbajac, 57, fundir com tanta energia e insolência a moda, o design, a música e as artes plásticas.

Artista precoce, filho de aristocratas, Castelbajac desenhou seus primeiros croquis aos 13 anos. Os passos iniciais no mundo da moda foram dados com a coleção desenhada em 1968 para a empresa Ko and Co, fundada por sua mãe na cidade de Limoges. No mesmo ano, criou sua emblemática "Veste de pensionnaire", um casaco feito com cobertor reciclado, imortalizado por John Lennon.

A partir dos anos 80, o trabalho de Castelbajac foi profundamente marcado por sua admiração pela arte pop e a música, e pelos encontros com artistas como Andy Warhol, a quem ele dedicou um desfile em 1984.

A mostra "Gallierock", em cartaz no museu Galliera da Moda, de Paris, faz uma retrospectiva dos 40 anos de carreira do estilista. Ali está reunida toda a parafernália que povoa o universo Castelbajac e algumas de suas principais criações, como os pulôveres com estampas do cãozinho Snoopy ou o casaco Teddy Bear, de 1988, feito de ursinhos de pelúcia e que foi usado por Madonna.

Numa pequena sala de seu ateliê em Paris, o estilista recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva. O lugar reúne todos os símbolos de seu universo tão particular : as estampas de camuflagem que cobrem o canapé, os cartazes cobertos por logomarcas, os livros de artistas como Warhol ou Vasarely e, no canto de uma cadeira, lembrando uma infância esquecida, um ursinho de pelúcia.

A exposição "Gallierock" não segue um percurso cronológico. Como o público deve percorrer e compreender esses 40 anos de criações expostas no museu Galliera?

Uma exposição não é feita para dar respostas, mas sim para colocar questões. "Gallierock" não é um pretexto para falar da minha carreira. Não é uma exposição sobre Jean-Charles de Castelbajac . É uma exposição por Jean-Charles de Castelbajac. Para mim essa mostra é uma maneira de falar das minhas paixões, dos temas recorrentes no meu trabalho.

Porque o sr. decidiu acrescentar à mostra modelos antigos, históricos?

Porque vivemos em uma época em que buscamos o sentido de nossa existência. A modernidade é devorante. O fato de caminharmos na direção de um mundo globalizado faz com que esqueçamos nossas raízes. Esquecemos de onde viemos, esquecemos que a roupa não é somente um objeto de marketing, mas também um catalisador de histórias, uma relíquia. A primeira roupa à qual me apeguei foi o smoking do meu pai. Então, eu quis falar disso. Eu quis também falar de história, que é algo que sempre me fascinou. Por isso, exibo na mostra essas pequenas bombas de desengate de emoção, como o conjunto qe pertenceu ao filho da rainha Maria Antonieta ou a roupa que Napoleão Bonaparte vestiu às vésperas de sua morte. Peças que falam também da morte, simplesmente.

A primeira criação de Castelbajac, "Veste de pensionnaire", realizada em 1968, a partir de um cobertor, já reunia diversos elementos que acompanharam muitas de suas criações: as dimensões exageradas, a utilização de tecidos e materais de reciclagem e a alusão ao universo infantil. São características obsessivas no seu trabalho?

Charles Schulz, que criou Snoopy, costumava dizer que eu sofria da síndrome de Linus, seu personagem que nunca queria largar o cobertor. Passei minha infância tentando ser um adulto, tentando me proteger, pois vivia em um colégio interno. E, quando cresci, passei minha vida de adulto tentando inventar uma infância. Não quer dizer que eu não queira crescer, mesmo que, como muitos artistas, tenha sido tocado pela síndrome de Peter Pan. Mas no mundo da infância há o imaginário, há uma espécie de pureza e de violência também, porque a infância não é feita somente de momentos deliciosos. Então, minha leitura da infância é muito particular. E "Gallierock" mostra parte desse universo, inclusive o sofrimento, simbolizado nos arames farpados, nos andaimes.

A escolha da desconstrução dos objetos para transformá-los em roupas, a criação de vestidos e casacos superdimensionados, a integração de bens de consumo ao universo da costura, tudo isso seria uma espécie de manifesto contra o glamour da moda ?

Eu nunca me deixei seduzir pelo glamour da moda. Sempre achei que, na definição da palavra glamour, havia uma forma de vulgaridade. O glamour nunca me fascinou. Muito pelo contrário. Sempre me interessei mais, por exemplo, pelos lordes ingleses que vestiam casacos furados. O que me fascinava era outra forma de elegância, ligada a uma certa naturalidade, simplicidade, humildade. No glamour há um aspecto de perfeição, e sempre achei que a perfeição era algo próximo do fascismo, algo inquietante. Não amo as coisas perfeitas. Sou um inimigo total da perfeição.

O sr. é católico?

Sim, sou católico. Graças a um padre da prisão de Frenes, com quem trabalhei voluntariamente em 1991, participei do projeto da Jornada Mundial da Juventude. Aí, tive a idéia do arco-íris, que simbolizava a ligação entre Deus e os homens. Três semanas antes, o papa me pediu que desenhasse também sua veste litúrgica. Quando vi João Paulo 2° com seu manto e um milhão de jovens com as camisetas que criei, entendi que era possível fazer modelos únicos e populares ao mesmo tempo. E lembro-me do que o próprio papa me disse, que eu havia utilizado as cores como cimento da fé.

Como o sr. vê hoje a criação na moda contemporânea?

O que é a criação hoje, na França? Vanessa Bruno, Isabel Marant, Mango, Zara, H&M? Eu venho de uma época em que a criação não seguia uma lógica econômica. Por isso, muitas de nossas empresas fecharam . Mas acho que, quando se tem talento, quando se é criativo de verdade, não tem problema trabalhar com uma lógica industrial. É o que faço atualmente e fico feliz de ter aceitado essa idéia, de ter me transformado em uma espécie de designer. Hoje, quando trabalho com Roussignol , por exemplo, ou na minha nova linha JCDC Teenager, me sinto mais designer do que estilista. Gosto da idéia de industrialização da minha criatividade.

Com o advento de novas capitais, como Moscou, Sidney ou Pequim, o sr. acredita que cidades como Paris e Milão vão continuar sendo as capitais mundias da moda?

Isso não muda nada. É como se você me dissesse: na China construíram um Château de Versailles! E daí? Acho que cada país tem uma história. Essa coisa específica da elegância é ligada ao meu país. Na moda francesa, há algo de experimental, algo ligado aos direitos humanos. E uma coisa boa da Revolução Francesa foi ter permitido acolher, neste país que tem uma alma tão particular, gente de vários cantos do mundo. Gosto muito da moda londrina também. Tem um lado extravagante, original. Aprecio a visão deturpada que os ingleses têm do luxo.

Quais são os seus próximos projetos?

Em setembro, devo lançar minha nova linha JCDC para adolescentes, estou preparando o lançamento de um novo perfume, minha exposição vai para Nova York (mas ainda não sei quando), vou lançar uma coleção de objetos para casa e tenho o projeto de escrever e montar uma ópera rock. Já escrevi a história. É sobre uma espécie de príncipe roqueiro que vive por volta de 2099, num lugar muito poluído, onde há conflitos entre os moradores da cidade e os da periferia. É a história de um menino que vive num castelo e que sonha conhecer a periferia.

E sobre a nova linha destinada ao jovens. São peças em jeans ?

Terá peças em jeans e também camisetas sublimes. Será uma coleção leve, criativa e conceitual. A obsessão é fazer peças acessíveis com a mesma energia que empregamos para fazer peças inacessíveis, como as da alta-costura.

O sr. já esteve no Brasil ?

Fiz um desfile no Brasil com outros cinco estilistas, entre eles Jean-Paul Gaultier. Foram dois desfiles em São Paulo e dois no Rio de Janeiro, em 1981. Fizemos um desfile muito bonito com estilistas brasileiros. Tenho vários amigos estilistas brasileiros no My Space. Geralmente eles gostam de mim, me acham simpático, porque sou um pouco "loco" (risos).

por Ana Dani (de Paris)
foto Etienne Clément

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