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A MORTE DE COVAS
Mário Covas Júnior entrou na política pelas mãos de Jânio Quadros, combateu o regime militar e foi um dos fundadores do PSDB
Presidência foi o único sonho não alcançado
CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL
Quando criança, Mário Covas
Júnior sonhava em ser presidente.
Do Santos F.C., o clube da cidade
(Santos) em que nasceu no dia 21
de abril de 1930. Nem tentou. Já
adulto, sonhou de novo em ser
presidente. Da República. Tentou, em 1989, e perdeu.
A morte impede que volte a tentar em 2002, justamente quando,
na opinião de dez entre dez líderes do PSDB, seu partido, era o
candidato natural para suceder a
Fernando Henrique Cardoso, pelo menos até ser operado de um
câncer na bexiga, no final de 1998.
A Presidência foi o único sonho
que as urnas negaram a esse engenheiro convertido em político 24
horas por dia. Por meio delas, foi
tudo o mais: deputado federal por
três vezes, senador (87/95) e governador de São Paulo (95 até
morrer). Sem contar o posto de
prefeito da capital paulista, embora biônico (83/85).
Nem essa longa carreira pública
permite, no entanto, que se aplique a Covas um rótulo fácil, ao
contrário do que ocorre com a
maioria dos políticos brasileiros.
Começou janista, eleitor e partidário de Jânio Quadros, o efêmero presidente eleito em 1960 e que
renunciou no ano seguinte. Jânio
é, talvez, o mais escrachado exemplo de populista em um país em
que o populismo teve incontáveis
expoentes.
Foi Jânio, aliás, quem puxou
Covas, então engenheiro da Prefeitura de Santos, para a política.
Necessitava de uma jovem e promissora liderança e encontrou-a
em Covas, a quem Saulo Ramos,
fiel escudeiro do então presidente,
convenceu a disputar a prefeitura.
Perdeu. Mas ficou na política. E
foi colidir de frente com seu iniciador no ofício: prefeito de São
Paulo, Covas trabalhou intensamente pela candidatura do senador Fernando Henrique Cardoso
para sucedê-lo, em 1985, na primeira eleição direta para a prefeitura da capital paulista depois de
quase 20 anos de administradores
nomeados pelo governador. O
adversário era justamente Jânio
Quadros. Covas perdeu de novo.
Foi conferir os mapas de votação e descobriu que Jânio tivera
mais votos que Fernando Henrique Cardoso mesmo em bairros
periféricos nos quais a prefeitura
de Covas realizara muitas obras.
"Carências dessa gente"
"São tantas as carências dessa
gente que o poder público é visto
como opressor. E o voto vai para a oposição", filosofou.
O ziguezague entre o janismo e
o antijanismo, na política, pode
ser encontrado também nas características pessoais de Covas. É
difícil dizer quem era o Covas verdadeiro, se o "Zuza", carinhoso
apelido de infância usado pela família e por uns poucos amigos íntimos, ou se "o espanhol", tomado como sinônimo de teimoso e
mal-humorado, mas também como referência à origem da família
Covas (Pontevedra, cidade da Galícia, no norte da Espanha).
Talvez ambos fossem verdadeiros. Para os amigos, a família e os
correligionários mais fiéis, era o
"Zuza", capaz de encostar o umbigo no balcão de qualquer botequim para conversar fiado com
eleitores. Para os demais assessores e para a maioria dos jornalistas, era o "espanhol", cheio de cobranças, idéias fixas e um mau
humor que oscilava entre autenticidade e símbolo de austeridade.
Para o próprio Covas, o "Zuza"
deveria ser o verdadeiro. "Quem
nasce na Baixada (Santista) não
pode ser mal-humorado", chegou
a dizer certa vez.
Austeridade talvez seja a única
qualidade que nem os adversários
lhe negam. Quando explodiu no
noticiário o papelório que ficou
conhecido como dossiê Caribe,
sobre uma suposta conta conjunta de Covas, FHC, Sérgio Motta e
José Serra em um paraíso fiscal, o
presidente Fernando Henrique
Cardoso reagiu com bom humor:
"Se já é difícil fazer negócios lícitos com o Mário, imagine então
negócios ilícitos".
O governador de Santa Catarina, Esperidião Amin (do PPB, o
mais encarniçado adversário de
Covas), conta que o paulista levava um livro-caixa com anotações
de todas as suas receitas e despesas desde muitos anos.
Mas austeridade nem sempre é
qualidade valorizada pelo eleitorado. No dia em que assumiu o
Estado, no primeiro mandato,
não havia dinheiro em caixa nem
para pagar "papagaios" que venciam naquele mesmo dia, sem
contar a ameaça da Petrobras de
cortar o fornecimento de gasolina
para os veículos oficiais por causa
de dívida acumulada.
Impopularidade
Covas não teve remédio senão
passar os três primeiros anos de
sua gestão arrumando a casa, investindo pouco. Resultado: a impopularidade que o levou a sofrer
imensamente para passar para o
segundo turno, ao disputar a reeleição, em 1998. Teve apenas meio
ponto percentual mais que a petista Marta Suplicy, que jamais
havia disputado um cargo majoritário na vida (22,95% x 22,51%)
-um número baixo para quem
acumulara recordes eleitorais.
Foi o senador mais votado da
história republicana, ao eleger-se,
em 1986, com 7.785.667 votos. Foi
também o governador mais votado da história, no segundo turno
de 98 (9.800.253 votos). Claro que
se beneficiou do fato de São Paulo
ser, de longe, o Estado com maior
número de eleitores no país.
Covas era igualmente uma espécie de ser híbrido: alma de político, cabeça de engenheiro (sua
profissão original, diplomado pela mais famosa escola do ramo, a
Politécnica de São Paulo).
De alguma forma, híbrido também no aspecto religioso: embora
espírita, jamais fez alarde dessa
condição e nunca deixou de cultivar amigos de outras religiões, em
especial a católica (o cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, dom
Paulo Evaristo Arns) e a judaica
(o rabino Henry Sobel).
Como político, especialmente
em cargos no Congresso, participou de todas as principais articulações do país tanto antes como
durante o regime militar (64-85).
Regime militar
Articulou, por exemplo, a rejeição pela Câmara da licença para
processar o então deputado Márcio Moreira Alves, em 1968, que fizera discurso considerado ofensivo pelos militares.
Covas era líder de um bloco de
pequenos partidos, entre os quais
o seu, o PST (Partido Social Trabalhista). "O governo tem medo
do povo", chegou a dizer.
A licença para processar Moreira Alves foi de fato negada, mas a
reação dos militares foi violenta:
editaram o Ato Institucional número 5, um dos mais poderosos
instrumentos de arbítrio que o
país conheceu, fecharam o Congresso, cassaram mandatos.
Covas foi um dos parlamentares
cassados (dia 16 de janeiro de
1969, um mês e três dias depois de
editado o AI-5). Ficou dez anos no
ostracismo, com os direitos políticos suspensos. Saiu da hibernação
forçada em 1979 e ingressou no
segundo partido de sua vida, o
PMDB (o terceiro seria o PSDB,
que ajudou a criar, em 1988).
Político engenheiro
Como administrador, prevalecia, no entanto, o cérebro de engenheiro. Era capaz de citar de memória, sem consultar um único
papelucho, números relativos a
ações de várias das secretarias de
Estado. No caso de porcentagens,
ia, sem pensar duas vezes, até a segunda casa decimal.
Mas a alma de político revelava-se também, com clareza, na capacidade de antever fatos menos por
uma avaliação sociológica e mais
por puro instinto.
Foi assim com o AI-5. Oito meses antes, Covas dizia, da tribuna
da Câmara, que o governo militar
caminhava para se tornar prisioneiro da lógica da força e da violência. Vinte anos depois, o então
governador de Alagoas, Fernando
Collor de Mello, despachou um
emissário para propor a Covas a
seguinte chapa presidencial: Covas presidente, Collor vice.
"Não confio nesse sujeito", devolveu Covas. O tempo lhe daria
razão. Collor, em vez de vice, foi
candidato e se elegeu, mas apenas
para se tornar o primeiro presidente da história do país a ser expulso do cargo pela via constitucional, a do impeachment.
Covas ainda daria um segundo
"não" a Collor. O então presidente chegou a convidar Tasso Jereissati, governador do Ceará, e Fernando Henrique Cardoso para
uma conversa destinada a convidar os tucanos a participar de seu
governo, que passaria então a ser
de "notáveis", como a mídia da
época batizou o ensaio.
Antes mesmo que Tasso e FHC
anunciassem a decisão, Covas gritou "não" de público e inviabilizou a hipótese de as plumas do tucanato enfeitarem o governo do
homem em quem não confiava
(FHC diz, uma e outra vez, que a
decisão dele e de Tasso também
era essa e que, portanto, não foi
Covas, sozinho, quem inviabilizou a operação).
Plano Real
A intuição que o levou a rejeitar
Collor funcionou de novo em
1995, quando o governo Fernando Henrique e boa parte do público ainda estavam em lua-de-mel
com um Real sobrevalorizado em
relação ao dólar. Covas dizia à revista "Carta Capital": "Acho que o
Real cometeu o pecado do orgulho. Não precisaríamos dar de
graça 20% em cima do dólar, porque isso acaba criando problemas
no futuro".
Quatro anos depois, o "futuro"
cheio de "problemas" chegou,
com a crise que vitimou a moeda.
Quando o intuitivo, no entanto,
deixava-se dobrar pelos marqueteiros, o resultado era bem diferente. Foi assim na campanha
presidencial de 1989. Para afastar
a fama de esquerdista, que criara
como líder do PMDB no Congresso constituinte, Covas fez um discurso para marcar posição inversa: defendeu um "choque de capitalismo" no Brasil.
Provocou certo "frisson" nos
setores conservadores, que o
viam como perigoso, estatizante e
nacionalista, mas nem assim sua
candidatura decolou. Terminou
atrás dos verdadeiros esquerdistas (Luiz Inácio Lula da Silva e
Leonel Brizola) e, é claro, de Fernando Collor, o vencedor.
Derrotas
Perderia de novo no ano seguinte, na eleição para governador,
mas se recuperaria com duas vitórias consecutivas, sempre para
governador (em 94 e 98).
Mas acabou derrotado pela
doença, aliás, por uma sucessão
delas. Em 86 e 87, sofreu infartos.
Após o segundo deles, teve implantadas duas pontes de safena e
uma mamária. Em 93, extraiu a
vesícula. Em 94 e 95, foi internado
por conta de uma erisipela (infecção na pele causada por bactéria).
Em maio de 98, outra infecção
(herpes-zoster) atingiu parte da
cabeça e do lado direito da testa.
Em outubro de 2000, um pólipo
no intestino revelou-se um tumor maligno.
Quando saiu do hospital, após
tratar do segundo ataque de erisipela, disse aos jornalistas: "Não
tenho planos de morrer nos próximos quatro anos. Me elegeram,
agora terão que me aguentar".
Os eleitores aguentaram, tanto
que o reelegeram três anos depois. Mas, desta vez, o plano de
não morrer foi frustrado.
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