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Antropólogo indiano Shiv Visvanathan diz que devemos recuperar a idéia de comida como dádiva
Pensador quer ciência da festividade
DA REDAÇÃO
O antropólogo e historiador da
ciência Shiv Visvanathan, 51, é outra
voz dissonante que vem da Índia.
Com uma linguagem poética que destoa do tom acadêmico típico
das universidades que o convidam para dar palestras, como a de Harvard, o professor
do Centro de Estudos sobre
Sociedades em Desenvolvimento (Nova Déli) diz que
"cozinhar se transformou em
uma série de regras de segurança" e pede uma ciência fora da "política do medo" que
domina os debates atuais.
Leia a seguir a entrevista
que Visvanathan concedeu à
Folha, por telefone, de Brighton (Reino Unido).
(MB)
Folha - O medo de comer tem relação
com uma desnaturalização da comida?
Shiv Visvanathan - É mais do que isso: é uma falta de fé na natureza. Na
agricultura tradicional, há uma reciprocidade na relação com a natureza.
A comida é vista como uma dádiva, e
o agricultor é apenas um depositário
dessa dádiva. Quando se introduz a
noção do artificial, não é apenas a comida que muda, mas também a natureza da hospitalidade e da cultura que
concebe essa comida.
Folha - Isso afeta o ritual de comer?
Visvanathan - A artificialidade está
destruindo a idéia de semente, de comida e de dádiva. Assim, destrói um
padrão de civilização: a idéia de "cuisine". Se os transgênicos fazem alguma coisa, é expressar o que a mídia
diz sobre o que devemos ou não comer. Cozinhar se transformou em
uma série de regras de segurança,
uma atividade que exige tão pouca
habilidade quanto dirigir um automóvel -em qualquer sociedade tradicional, é uma questão de confiança
e hospitalidade. A comida transgênica não é uma comida em nenhum
sentido tradicional do termo.
Folha - Então, sobre o que deveríamos falar quando falamos de comida?
Visvanathan - Deveríamos falar sobre dádiva, sobre cosmologia. Se a Índia tem 50 mil tipos de arroz, talvez
tenha 50 mil formas de sonhar e 50
mil formas de cozinhar. Muitos desses tipos de arroz são cultivados para
ocasiões especiais: cozinha-se um tipo de arroz para casamentos, outro
para festivais, outro porque tem um
cheiro ou um gosto particular. Há estética, cosmologia, religião e gosto envolvidos. Quando olho para um hambúrger, não vejo tudo isso.
Folha - Devemos repensar o modelo
de produção de comida?
Visvanathan - Sim. Há um desafio
para a ciência, no sentido de aumentar a produtividade. Mas esse desafio
tem de ser pensado em termos de como ser funcional dentro de certas diretrizes civilizacionais. O que comemos muda a definição de comer.
Folha - Intelectuais do Terceiro Mundo podem dar uma contribuição especial a esse debate?
Visvanathan - Sim: a de entender a
noção de comida como dádiva, para
recuperarmos a noção de natureza e
de como reinserir a ciência em certas
noções de cosmologia civilizacional.
Mas não se pode esquecer que os
maiores defensores dos transgênicos
são cientistas do Terceiro Mundo.
Cientistas indianos estão sempre repetindo que a biotecnologia pode nos
transformar em uma superpotência.
Mas não estudamos os impactos de
muitas dessas comidas, não fizemos a
análise de custo social a longo prazo e
não acho que tenhamos entendido
qual é a relação da semente com o
agricultor. Quando a multinacional
fornece a semente, a noção de semente na civilização muda totalmente.
Muitos de nossos agricultores tribais plantam pelo menos 20 tipos de
semente em cada ciclo. Acho que eles
têm uma noção diferente de segurança, relacionada à natureza -diferente da do homem que planta transgênicos. A Monsanto diria que quer
controlar toda a cadeia alimentar,
mas nenhum agricultor do Terceiro
Mundo teria essa pretensão.
Folha - Como o sr. vê o futuro do debate sobre a comida?
Visvanathan - Sempre fico surpreso
que os debates sejam construídos sobre o medo ou a escassez. Toda a economia é construída em torno da escassez, e a biotecnologia moderna parece ser construída em torno do medo ou da riqueza. Não vejo ninguém
construindo nada em torno da festividade ou do jejum -e jejum não é
anorexia, mas uma forma diferente
de perceber os ritmos do corpo.
O maior problema é o fato de que a
comida perdeu seu sentido de multiplicidade temporal, ou seja, saber
quando se deve comer o quê -e isso
não tem nada a ver com economia.
Temos de libertar a economia dos
economistas e dos marketeiros, para
recuperar o sentido da prudência.
Deveríamos construir uma ciência
em torno da festividade ou do jejum,
fora da política do medo. Isso não significa ignorar a biotecnologia: ela é
ótima se pensarmos que é uma extensão da fermentação. Se podemos celebrar o pão e o vinho e perceber que
são frutos da biotecnologia, por que
não resgatar essa idéia de comida?
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