São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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RELIGIÃO

Três correntes disputam conceitos

MATEUS SOARES DE AZEVEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O desafio representado pelo modo de vida ocidental moderno provocou as mais diversas reações por parte dos povos islâmicos. Poder-se-ia falar em três tipos principais de posturas, uma das quais engendrando, em seu extremo limite, o movimento de intolerância que levou ao suposto terrorismo por parte de Bin Laden e outros.
A primeira dessas correntes pode ser caracterizada como a do "aggiornamento", para usar termo cunhado por modernistas católicos que levaram a cabo política de "acomodação" da Igreja às tendências secularizantes.
Essa tendência também se manifestou no mundo islâmico, sem propor exatamente mudanças na doutrina e nos rituais, mas "compromisso" com o Ocidente moderno, sua cultura, seus costumes e sua ideologia, seja ela liberal ou marxista. Os "modernistas islâmicos" abrangem um espectro amplo de posições políticas, sociais e religiosas, incluindo o "nacionalismo árabe" de Nasser, o "socialismo islâmico" da Argélia e até mesmo, em certa medida -já que seu ideário encampa teses "fundamentalistas"-, a Revolução Islâmica de Khomeini. A idéia predominante é a de "acomodação" com as ideologias modernas.
O segundo grupo, que pode ser denominado de "Islã tradicional", é a tendência mais tolerante para com outras religiões e culturas e também a mais mística e contemplativa, corporificando-se sobretudo nas fraternidades sufis, as "tariqahs". Existentes por todo o "Dar el Islam" até hoje, os sufis são responsáveis pelas principais produções da cultura e da arte.
Apesar disso, do ponto de vista da força política, essa corrente não tem a presença material das duas outras tendências principais. Não obstante, ela acredita no "poder da verdade" e, mesmo minoritária, continua influente tanto entre a elite intelectual quanto entre o povo mais piedoso.
Essa perspectiva, que chamamos de "tradicional", é pacífica e prefere recorrer à oração, à meditação e à prática das virtudes fundamentais, como a generosidade, do que pegar em armas para fazer valer seu ponto de vista.
A terceira corrente, que nos interessa mais no momento, é a que mais comove o Ocidente. Trata-se do chamado "fundamentalismo". Como as outras duas, abrange vasta gama de posições, desde a que implica uma interpretação literal das injunções corânicas, dos "hadiths" (ditos tradicionais) e da "sunna" (modos e costumes do profeta), mas que são pacíficos, até aqueles que, como Osama bin Laden, propõem diretamente o terror contra o Ocidente.
Essa posição quer, de certa forma, retornar à "primitiva pureza" do Islã, baseando-se exclusivamente no Alcorão e nos "hadiths", interpretados de maneira literal e limitada. Desejam, do mesmo modo, descartar todas os desdobramentos culturais, filosóficos e artísticos que acompanharam a história da civilização islâmica e seus contatos com vários povos e culturas do mundo.
Entre os corifeus dessa tendência fundamentalista, menção deve ser feita ao "pai" da Arábia Saudita, Mohamed ibn abd al Wahab, de quem deriva o termo "wahabismo". Os wahabistas têm uma visão bastante jurisdicista da tradição e apegam-se estritamente às injunções da sharia, a lei islâmica. Combatem todos os aspectos da civilização ocidental, sempre de maneira emotiva e tacanha.
Os fundamentalistas lutam em geral pela independência política dos países islâmicos e contra a influência ocidental, em favor dos costumes primitivos e da aplicação rigorosa da lei islâmica. Ao mesmo tempo, são, por assim dizer, indiferentes ao rico legado filosófico, artístico e místico do Islã medieval e de suas contribuições para toda a civilização ocidental.
Nas bordas extremas dessa corrente, ou em seus "porões", grassam grupos minoritários, condenados pela maioria dos muçulmanos, que propõem e praticam o terror para chegar a seus objetivos. Entre eles, destaca-se o grupo de Osama bin Laden, o Al Qaeda (a base), que distorce versículos do Alcorão para legitimar sua ideologia e seu terrorismo.
Segundo a perspectiva islâmica tradicional, esses movimentos extremistas pervertem os versículos corânicos que tratam da jihad, que literalmente significa "esforço" e que implica limites precisos. Exclui, por exemplo, a luta por uma causa mundana. Se seu objetivo é a obtenção de riquezas, a glória pessoal ou o ódio contra outro povo, não é jihad.
Esses agrupamentos militantes e extremistas têm um vínculo superficial com o Islã, aderem a ele como se adere a uma torcida organizada de futebol, de forma apaixonada e cega. A última coisa que se encontra neles é espiritualidade, que constitui justamente o cerne da mensagem islâmica.


Mateus Soares de Azevedo é mestre em História das Religiões pela USP e autor de "Iniciação ao Islã e Sufismo" (Record), "Mística Islâmica" (Vozes) e "Religião e Esoterismo" (no prelo).


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