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RELIGIÃO
Três correntes disputam conceitos
MATEUS SOARES DE AZEVEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O desafio representado
pelo modo de vida
ocidental moderno
provocou as mais diversas reações por parte dos povos islâmicos. Poder-se-ia falar
em três tipos principais de posturas, uma das quais engendrando,
em seu extremo limite, o movimento de intolerância que levou
ao suposto terrorismo por parte
de Bin Laden e outros.
A primeira dessas correntes pode ser caracterizada como a do
"aggiornamento", para usar termo cunhado por modernistas católicos que levaram a cabo política de "acomodação" da Igreja às
tendências secularizantes.
Essa tendência também se manifestou no mundo islâmico, sem
propor exatamente mudanças na
doutrina e nos rituais, mas "compromisso" com o Ocidente moderno, sua cultura, seus costumes
e sua ideologia, seja ela liberal ou
marxista. Os "modernistas islâmicos" abrangem um espectro
amplo de posições políticas, sociais e religiosas, incluindo o "nacionalismo árabe" de Nasser, o
"socialismo islâmico" da Argélia e
até mesmo, em certa medida -já
que seu ideário encampa teses
"fundamentalistas"-, a Revolução Islâmica de Khomeini. A idéia
predominante é a de "acomodação" com as ideologias modernas.
O segundo grupo, que pode ser
denominado de "Islã tradicional",
é a tendência mais tolerante para
com outras religiões e culturas e
também a mais mística e contemplativa, corporificando-se sobretudo nas fraternidades sufis, as
"tariqahs". Existentes por todo o
"Dar el Islam" até hoje, os sufis
são responsáveis pelas principais
produções da cultura e da arte.
Apesar disso, do ponto de vista
da força política, essa corrente
não tem a presença material das
duas outras tendências principais. Não obstante, ela acredita no
"poder da verdade" e, mesmo minoritária, continua influente tanto entre a elite intelectual quanto
entre o povo mais piedoso.
Essa perspectiva, que chamamos de "tradicional", é pacífica e
prefere recorrer à oração, à meditação e à prática das virtudes fundamentais, como a generosidade,
do que pegar em armas para fazer
valer seu ponto de vista.
A terceira corrente, que nos interessa mais no momento, é a que
mais comove o Ocidente. Trata-se
do chamado "fundamentalismo".
Como as outras duas, abrange
vasta gama de posições, desde a
que implica uma interpretação literal das injunções corânicas, dos
"hadiths" (ditos tradicionais) e da
"sunna" (modos e costumes do
profeta), mas que são pacíficos,
até aqueles que, como Osama bin
Laden, propõem diretamente o
terror contra o Ocidente.
Essa posição quer, de certa forma, retornar à "primitiva pureza"
do Islã, baseando-se exclusivamente no Alcorão e nos "hadiths", interpretados de maneira
literal e limitada. Desejam, do
mesmo modo, descartar todas os
desdobramentos culturais, filosóficos e artísticos que acompanharam a história da civilização islâmica e seus contatos com vários
povos e culturas do mundo.
Entre os corifeus dessa tendência fundamentalista, menção deve
ser feita ao "pai" da Arábia Saudita, Mohamed ibn abd al Wahab,
de quem deriva o termo "wahabismo". Os wahabistas têm uma
visão bastante jurisdicista da tradição e apegam-se estritamente às
injunções da sharia, a lei islâmica.
Combatem todos os aspectos da
civilização ocidental, sempre de
maneira emotiva e tacanha.
Os fundamentalistas lutam em
geral pela independência política
dos países islâmicos e contra a influência ocidental, em favor dos
costumes primitivos e da aplicação rigorosa da lei islâmica. Ao
mesmo tempo, são, por assim dizer, indiferentes ao rico legado filosófico, artístico e místico do Islã
medieval e de suas contribuições
para toda a civilização ocidental.
Nas bordas extremas dessa corrente, ou em seus "porões", grassam grupos minoritários, condenados pela maioria dos muçulmanos, que propõem e praticam
o terror para chegar a seus objetivos. Entre eles, destaca-se o grupo
de Osama bin Laden, o Al Qaeda
(a base), que distorce versículos
do Alcorão para legitimar sua
ideologia e seu terrorismo.
Segundo a perspectiva islâmica
tradicional, esses movimentos extremistas pervertem os versículos
corânicos que tratam da jihad,
que literalmente significa "esforço" e que implica limites precisos.
Exclui, por exemplo, a luta por
uma causa mundana. Se seu objetivo é a obtenção de riquezas, a
glória pessoal ou o ódio contra
outro povo, não é jihad.
Esses agrupamentos militantes
e extremistas têm um vínculo superficial com o Islã, aderem a ele
como se adere a uma torcida organizada de futebol, de forma
apaixonada e cega. A última coisa
que se encontra neles é espiritualidade, que constitui justamente o
cerne da mensagem islâmica.
Mateus Soares de Azevedo é mestre
em História das Religiões pela USP e autor de "Iniciação ao Islã e Sufismo" (Record), "Mística Islâmica" (Vozes) e "Religião e Esoterismo" (no prelo).
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