Livraria da Folha

 
23/08/2010 - 18h09

Além de juras de amor, alemães pediam dinheiro e emprego a Hitler, revelam cartas

ARIADNE ARAÚJO
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Livro mostra mensagens do povo alemão ao ditador
Livro mostra mensagens do povo alemão dirigiadas ao ditador

Juras de lealdade e amor eternos, confidências, agradecimentos, convites, congratulações e pedidos de emprego, ajuda, dinheiro. Às mãos do Führer ou dos chefes de suas chancelarias, chegaram em forma de cartas, bilhetes, cartões, versinhos, poemas e redações infantis. Tirada de arquivos empoeirados de Berlim, a vasta correspondência de Hitler traz novo olhar sobre a história da queda e ascensão do Terceiro Reich.

Em "Cartas para Hitler" (Planeta), o pesquisador e historiador Henrik Eberle, dá acesso ao público de parte deste mar de documentos, testemunho sincero da mentalidade alemã da época e vasto material para aficionados pelo assunto, estudantes, historiadores, psicólogos, pedagogos. Hitler considerava estas cartas uma espécie de "barômetro" do povo alemão. De 1925 até 1945, ao todo, foram 12 mil delas.

A chegada destas cartas à caixa postal do terceiro Reich mostra o que o autor chama de "desenvolvimento da curva de sua popularidade" - multiplicando-se ano a ano, no início e auge, depois escasseando, até quase nada, nos últimos tempos de guerra. O conteúdo também mudou, ao longo dos anos. Em 1933, mensagens de reconhecimento e gratidão; de 1935 a 1938, uma grande onda de veneração; já a partir de 1940, com a guerra, sentimentos confusos, pedidos e sugestões ou expressões de ódio aos judeus.

AP
Ditador nazista Adolf Hitler; foto de 1937
Ditador nazista Adolf Hitler; foto de 1937
Siga a Livraria da Folha no Twitter
Siga a Livraria da Folha no Twitter

Uma menina de 13 anos escreve a Hitler chamando-o de bondoso tio. Uma baronesa diz que tudo foi iluminado por um amor tão grande ao Führer "que às vezes quero morrer diante de sua fotografia, para que eu não veja outra coisa além do senhor", e, junto à assinatura, acrescenta: "sua até a morte". Uma freira parabeniza Hitler por uma bem-sucedida "limpeza do templo", referindo-se ao assassinato de uma liderança paramilitar do partido nazista - segundo Henrik Eberle, a escolha do vocábulo faz-nos interpretar no texto da freira uma equiparação entre Hitler e Jesus.

Além desta dimensão religiosa, bastante presente nas cartas, o historiador comenta ainda o tom ingênuo no conteúdo desta correspondência. Ele cita estudos realizados por psicólogos que associam este comportamento a um desejo de "não serem responsáveis, e ser pequenas, infantis, inocentes". Segundo o psicólogo Stephan Marks, houve uma transferência voluntária de responsabilidade para uma instância mais alta porque é neste "mundo mágico" o lugar onde as "fantasias de grandeza" se concretizam.

Leia um trecho do livro "Cartas para Hitler"

*

O tom de algumas cartas nos leva a questionar se não foram escritas por "loucos". Nos documentos do conselheiro ministerial Konrad Ehrich, responsável pela correspondência da população na chancelaria do Reich, podem ser encontradas apenas 13 observações, de 1945, que indicam que os remetentes haviam sido classificados como doentes mentais. Considerando-se as milhares de cartas enviadas a Hitler, esse número é baixo. A forma como o conselheiro ministerial lidava com essas mensagens é característica da gélida frieza da burocracia nazista.

No dia 14 de setembro, ele se dirige, inicialmente cauteloso, ao administrador do conselho de Calau informando-o sobre a carta de "uma Martha" de Senftenberg.

"Já há certo tempo, uma "Martha" envia cartas ao Führer cujos conteúdos nos levam a concluir que a remetente não é muito equilibrada mentalmente. Eu lhe envio a última carta que aqui chegou, de 8 de setembro de 1942, e peço que o senhor convença a escritora, caso possa ser localizada,a abandonar seus escritos sem sentido no futuro.

Por ordem

Ehrich"

Depois que a mulher, que se autodesignava "Martha Hitler", escreveu mais duas cartas a Adolf Hitler em novembro de 1942, o conselheiro ministerial notificou o chefe do serviço de segurança da SS. Presume-se que o serviço de segurança tenha mandado internar a mulher em um sanatório. Não foi possível descobrirmos se ela, como mais de centenas de milhares de outros doentes mentais, também foi morta.

A chancelaria privada de Hitler lidava com as cartas de doentes mentais de forma mais tranqüila. Aqui foi criado um 'arquivo A" para esse tipo de correspondência no qual eram incluídas também as "escritoras freqüentes". Essas mulheres não recebiam respostas. Somente quando as remetentes anunciavam que pretendiam ir à Berlim para finalmente tomar o amado Führer nos braços, o chefe da chancelaria privada, Albert Bormann, avisava a polícia local. Não sem razão, as pessoas consideravam um possível stalking por seguidores de Hitler eufóricos um risco à segurança.

Cartas totalmente desinibidas que expressavam de forma bastante abstrata "amor" ou admiração ilimitada eram desagradáveis a Hitler, mas ele conferia à correspondência popular em si um papel importante como "barômetro da atmosfera". Até o início da guerra, ele considerava de grande valor ser informado sobre as preocupações e necessidades da população. O chefe de cada uma das diferentes chancelarias de Hitler, por isso, tinha sempre acesso direto ao Führer; um privilégio pelo qual alguns ministros e até o presidente do Banco do Reich os invejavam. Naturalmente, Hitler não lia pessoalmente as cartas, com algumas exceções. Rudolf Heβ, que cuidou da correspondência da população até 1931, e depois Albert Bormann, preparavam excertos ou apresentavam a Hitler o que haviam encontrado nas cartas como "opinião do povo".

Assim, a questão sempre recorrente sobre a religião com a qual Hitler simpatizava era tomada a sério. O secretário privado Heβ normalmente indicava, "em nome do senhor Hitler", as suas observações no livro Minha luta. Às vezes ele também respondia de forma críptica com uma citação da Bíblia. A um participante do golpe de 1923 que, naquele meio-tempo, se tornara profundamente religioso, ele escreveu: "O senhor Hitler não se manifesta a respeito de tais perguntas puramente pessoais como a que o senhor colocou. Se o senhor, porém, colocar em prática a frase: 'Vós os reconhecereis pelos seus atos', então, não será necessária nenhuma resposta neste caso".

Muitas vezes, a chancelaria privada teve de ressaltar que o NSDAP (Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialista Alemão) não era um movimento evangélico, mas sim supraconfessional e político. Principalmente devido aos sentimentos religiosos da população, Hitler deixou-se fotografar durante as campanhas eleitorais em cultos religiosos.

 
Voltar ao topo da página