Livraria da Folha

 
14/09/2010 - 11h13

Relembre os primeiros dias do Plano Real com crônica de Miriam Leitão

da Livraria da Folha

Divulgação
A jornalista analisa e comenta os fatos da vida política e econômica
A jornalista analisa e comenta os fatos da vida política e econômica

É preciso um distanciamento histórico para analisar erros e os acertos dos governos. Quem tem cerca de 20 anos não deve se lembrar muito bem de quando o Plano Real foi lançado.

Os mais velhos ainda guardam na memória o efeito positivo do plano sobre a economia do país. Por isso, "Convém Sonhar" , livro que reúne textos assinados por Miriam Leitão ao longo de 20 anos dedicados a sua coluna no jornal "O Globo", é muito mais que uma coletânea. A obra é praticamente uma aula sobre a história e a política do país dos últimos anos.

A estabilidade alcançada graças ao pacote de medidas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi algo nunca visto na história deste país. A ideia é desenvolvida por Miriam na coluna "Os caras fizeram tudo direitinho", publicada em 17 de julho de 1994.

"Os planos costumavam chegar às editorias de economia como bombas atômicas, maremotos, prenúncios de fim de mundo. As medidas desabavam com uma onipresença quase divina", relata a jornalista no texto.

O livro muitas vezes foge da alçada econômica nos capítulos que falam sobre questões ambientais sentimento de país - com textos sobre ditadura, democracia e injustiças.

Leia o texto "Os caras fizeram tudo direitinho", extraído do livro.

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Os caras fizeram tudo direitinho

17.7.1994

Aos 11 dias da Era Real fui ouvir os economistas sobre as impressões que tinham do começo do plano. As observações foram variadas, os alertas um pouco contraditórios e o otimismo, generalizado. Mas, boa mesmo foi a frase de Luiz Paulo Rosemberg: "Foram os melhores primeiros dias de um plano econômico." Como jornalista tenho que subscrever essa definição.

Os planos costumavam chegar às editorias de economia como bombas atômicas, maremotos, prenúncios de fim de mundo. As medidas desabavam com uma onipresença quase divina. Os decretos e, mais modernamente, as medidas provisórias legislavam discricionariamente sobre qualquer aspecto da vida econômica: preços, salários, câmbio, casa própria, aplicações financeiras, contratos, índices. As mudanças imaginadas em meses de conspirações sigilosas contra os bolsos e a ordem constituída, tinham que ser entendidas e processadas instantaneamente. Tinha-se algumas horas para ler os indigestos documentos, traduzi-los para a língua corrente do país, tirar as dúvidas, entender o alcance das medidas, repercuti-las com especialistas e atingidos; tirar todas as contas dos economistas do governo. Eles sempre se equivocavam nas operações simples.

No dia seguinte o leitor teria que encontrar alguma ordem no caos produzido pelos economistas. Nos momentos iniciais dormia-se ou comia-se com um mínimo de regularidade nas editorias de economia. Saía-se das redações de madrugada para voltar algumas horas mais tarde. Um dia, ouvi um desabafo: "Isso não é uma redação é uma prisão albergue." Assim, ao contrário, saíamos só para dormir.

Havia momentos de estupor diante das medidas. É conhecida a história de um jornalista experiente que entendeu nos primeiros momentos do Plano Collor que, dali em diante, os brasileiros, independentemente de cargo, classe social, grau de escolaridade, receberiam mensalmente apenas 50 mil cruzeiros. Certamente nem o mais ferrenho líder comunista ousaria pensar em tão instantâneo igualitarismo. Na saga vivida pelo Brasil em busca da estabilização, os absurdos foram tantos que a certa altura qualquer sandice soava razoável.

Na vida das empresas, os congelamentos de preços decretados pelo governo caíam como gás paralisante. "Durante três ou quatro meses não se fazia nada a não ser administrar o congelamento", me contou tempos atrás o presidente das Lojas Americanas, José Paulo Amaral.

Uma grande empresa de varejo compra 17 mil itens por mês de uma lista de fornecedores conhecidos. Perto de planos econômicos, daqueles feitos à moda antiga, os fornecedores armavam seus esquemas defensivos. Vendiam por um preço, mas registravam por escrito que o preço era muito maior, tinha sido vendido "com desconto". No congelamento, valia o que estava escrito. O problema é que os preços no varejo são visíveis. A empresa tinha que sair à caça de outros fornecedores que entregassem os produtos a preços que permitissem cumprir o congelamento. Quando se queria fazer alguma promoção era preciso mandar cartas para a Sunab pedindo autorização para a redução temporária de preço. Do contrário, a promoção ficava congelada.

Uma rede como a Americanas mantinha, em época de congelamento, plantão de advogados e aviões. Em emergências, voava-se para acudir gerentes acossados por fiscais em qualquer uma das centenas de lojas espalhadas pelo país. Gastava-se todas as energias gerenciando não as empresas, mas o congelamento.

Quem conversa com José Paulo Amaral nestes primeiros dias do real encontra um administrador ocupado com suas 200 promoções diárias, mas nada que lembre o gerente da época dos congelamentos. "Desta vez os caras fizeram tudo direitinho", disse.

Os "caras" dessa vez tiveram essa delicadeza. Fizeram um plano em etapas, com medidas preanunciadas, sem mistérios, sem surpresas. É verdade que foram reprovados em matemática na primeira MP das mensalidades escolares e exibiram um extraordinário talento trapalhão no caso dos aluguéis. A tal ponto que muita gente suspeita que nenhum membro da equipe pagou ou cobrou aluguel na vida. Parecem desconhecer a natureza do contrato.

O sucesso inicial, entretanto, não garante que esse seja o plano que tenha vindo para acabar com todos os planos. Pelo contrário, nosso velho calcanhar de Aquiles volta a doer. Aos 15 dias da Era Real já havia se acumulado uma prematura sucessão de demanda por gastos. Como se a partir do primeiro dia em que houve queda de meio ponto percentual na cesta básica, os cofres públicos já pudessem ser de novo reabertos. As estatais querem mais recursos para investimentos, seus funcionários querem mais salários, o ministro da Ciência e Tecnologia quer mais bolsas de estudo, os militares mais soldos, os servidores novos vencimentos e algumas empresas privadas querem a volta dos empréstimos baratos.

Como se tudo fosse pouco, o governo leva a sério o projeto de transposição do Rio São Francisco. O nome, com um som meio bíblico, reduz à condição de obras sensatas os delírios do governo passado. A explicação para a emergência desse item na pauta das questões nacionais inadiáveis quase tem a ver com os astros. "É que esse é o momento em que há uma conjugação única", me disse um funcionário do governo. "O presidente da Câmara é de Pernambuco; o presidente do Senado, da Paraíba; o ministro da Integração Regional, do Rio Grande do Norte; o ministro do Planejamento, do Ceará." É uma explicação, à falta de outra. O ex-governador Antonio Carlos Magalhães, que, por ser baiano, está fora dessa quadratura, já tomou uma decisão: "Essa obra será assunto da minha primeira CPI no Senado."

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"Convém Sonhar"
Autor: Miriam Leitão
Editora: Record
Páginas: 504
Quanto: R$ 54,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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