Livraria da Folha

 
23/09/2010 - 17h17

Vingança é apimentada com dose de feitiçaria em "Senhora, A Bruxa"

colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Série de adaptações da Lua de Papel tem com alvo o público teen
Série de adaptações da Lua de Papel tem como alvo o público teen

Já dizia o velho ditado: a vingança é um prato que se come frio. Apesar disso, uma parte das reações de Aurélia Camargo em "Senhora, A Bruxa" é quase que instantânea.

Fofocaram dela no baile da cidade? Basta um olharzinho para a maledicente ter enxaqueca. Um velho tarado esbarrou a mão sem querer em seu corpo? No dia seguinte ele cai doente. O pretendente é um chato? Prever sua morte não é tarefa difícil para a linda e rica protagonista da divertida adaptação da obra de José de Alencar (1829-1877).

Escrita por Angélica Lopes, a trama mantém cerca de 60% da obra original, mas incorpora elementos fantásticos como as irmãs Blair - feiticeiras celtas em busca de vida eterna, que há mais 300 anos semeiam a discórdia entre os pobres casais apaixonados.

"Senhora, A Bruxa" integra a coleção "Clássicos Fantásticos", do selo Lua de Papel, da editora LeYa, ao lado de títulos como, "O Alienista Caçador de Mutantes" e "A Escrava Isaura e o Vampiro".

Esses mash-ups, ou mixagens literárias, ficaram famosos no resto do mundo por conta de adaptações como "Orgulho e Preconceito e Zumbis" e "Jane Austen: A Vampira".

Leia o primeiro capítulo de "Senhora, A Bruxa".

*

Capítulo 1

O vento soprou tão forte que os candelabros do salão se apagaram.

Um trovão fez com que os músicos perdessem o compasso e os convidados tiveram de interromper a valsa, que estava bem animada àquela altura do baile.

Naquele momento em que todos acharam que algo extraordinário iria acontecer, algo realmente extraordinário aconteceu.

Sob a luz dos relâmpagos que chicoteavam a escuridão, a deslumbrante Aurélia Camargo cruzou a entrada principal do palacete com seu vestido vermelho ricamente bordado, exibindo um colar de obsidianas negras e os cabelos ousadamente soltos.

Todos os convidados, sem exceção, fizeram "Óóóó" e pararam para admirar aquele vulto, que se aproximava como se tivesse sido trazido pelas forças da natureza.

Assim que a moça interrompeu o passo, os indícios da tempestade desapareceram por completo.

O mais estranho, porém, aconteceu com as velas.

Apagadas com a primeira rajada, elas ganharam vida nova antes que os criados chegassem com o fogo até elas. Bastou que Aurélia Camargo dissesse "Boa noite" para que as chamas se reacendessem como mágica. Mais altas e intensas, elas agora ressaltavam ainda mais a beleza da dama que acabara de chegar.

Duzentos anos à frente, dezenas de paparazzi de plantão na porta da festa espocariam seus flashes aos gritos de: "Aurélia! Olha para cá. É verdade que você e o Conde de Almerinho estão tendo um romance?". E na semana seguinte, as capas das revistas de fofoca exibiriam a manchete: "Aurélia Camargo Arrasa em Noite de Gala e Nega Novo Affair".

Naquele Rio de Janeiro do século XIX, Aurélia era a celebridade do momento, justamente por ter os atributos mais interessantes para qualquer mulher em qualquer época: era rica, linda
e solteira.

Madame Ferreira puxou o xale para cobrir os ombros e reclamou do clima que vinha fazendo ultimamente. Tão inconstante. "O céu estava limpo há pouco, como é possível?"

- Aurélia, querida. Você agora também tem poderes de espantar as tempestades? Não faltava mais nada mesmo - divertia-se a anfitriã, abraçando a convidada de honra, que estava atrasada e elegantérrima como sempre.

Sem a presença de Aurélia Camargo, Madame Ferreira sabia que seu baile seria um fiasco.

- Os rapazes ficam em polvorosa enquanto você não chega, meu bem. Por que demorou tanto?

- Justamente para que eles sentissem a minha falta - Aurélia brincou, dando uma piscadela e fazendo Madame Fer reira sorrir, admirada com a maturidade demonstrada por aquela moça de apenas 19 anos.

"Ah, se minhas filhas tivessem a mesma desenvoltura com os pretendentes, em vez de se comportarem como moscas-mortas, apagadinhas! Fariam um bom casamento por certo."

Aurélia atraía bons partidos por onde passava e, por isso, Madame Ferreira fazia questão de tê-la sempre por perto. Afinal, a moça só poderia escolher um único marido. E os rapazes descartados por ela estariam ali, prontos para cortejarem suas filhas, que andavam a ter ideias absurdas de amores eternos com pobretões sem eira nem beira.

Madame Ferreira espantou o pensamento tenebroso. Não havia pior destino para uma moça do que se casar com um Zé Ninguém.

Lísia Soares, que também adorava afirmar ser uma das melhores amigas de Aurélia Camargo, veio correndo lhe falar. O assunto era um tal de Alfredo Moreira, rapaz que chegara recentemente da Europa e que queria conhecê-la naquela noite, com intenções de cortejá-la.

Ao ouvir as maravilhas que Lísia dizia sobre o moço - muito poeta, muito sensível, muito talentoso, muito promissor na carreira de advogado, muito isso, muito aquilo -, Aurélia torceu o nariz.

- Deve valer quanto? Uns 50 contos?

Lísia estranhou a pergunta, mas tentou responder sem muita certeza, já que nunca fizera cálculos daquele gênero. Seu marido, por exemplo, não valia um tostão furado.

- Que seja o dobro, o triplo, quatro vezes mais. Digamos, 200 contos - Aurélia aumentou a oferta como se aquelas multiplicações nada significassem para ela, reles migalhas. - Com a fortuna que eu tenho, posso comprar um marido muito mais caro.

Lísia ficou sem jeito e Aurélia continuou:

- Vocês sabem que não tenho vocação para me contentar com pouco, não é, meninas?

- Sábias palavras - concordou Madame Ferreira, já pensando em apresentar o tal Alfredo Moreira para uma de suas filhas.

Por ser rica, linda e solteira, Aurélia tinha dezenas de pretendentes.

Costumava, inclusive, atribuir valor a eles. Em vez de se ofenderem com a brincadeira, os candidatos disputavam entre si os primeiros lugares no ranking. Dava status estar bem cotado naquele leilão de maridos.

- Posso então apresentá-la ao Barão de Vilaverde - Lísia Soares insistia com suas ânsias casamenteiras. - Riquíssimo. Dono de fazendas de café que ocupam metade do estado. Este vale mais, não vale?

Aurélia suspirou, enfadada.

- Vale. Mas morrerá em breve de mal do fígado. De que me adianta casar para me tornar viúva? Se pelo menos eu gostasse de café... Mas prefiro chá.

As duas senhoras se entreolharam, intrigadas com a previsão fatídica:

- Mas o barão nem chegou aos 35! Agora você lê o futuro também, Aurélia? - quis saber Lísia, curiosa.

- Quem sabe - disse a moça, mantendo o mistério e já cercada por seus admiradores, que não eram poucos.

Jovens bem-nascidos, homens casados e senhores respeitáveis que ficavam bem menos respeitáveis quando diante daquela mulher.

Uma vez, o sisudo Visconde de Lamarote fingiu um tropeço e roçou seu antebraço na cintura de Aurélia. A moça nada disse, educada que era. Mas, para o velho, a emoção foi praticamente fatal. No dia seguinte, foi acometido de um nó nas tripas que lhe causou uma febre cerebral. O pobre está entrevado numa cama até hoje e lá se vão sete meses.

A versão que corre é que o Visconde foi, na verdade, vítima de uma praga da esposa enciumada, que havia encomendado um feitiço a uma cigana da Travessa do Pasmado.

Mas essa versão também era pouco provável, já que a Viscondessa sempre foi uma beata de grande fervor e assim que o marido adoeceu, mandou colocar uma imagem de Nossa Senhora da Proteção Divina na porta de casa.

- Aurélia, a senhorita está belíssima esta noite, como sempre, aliás - elogiou o Comendador Loureiro, já pescando a dama pelo braço, competitivo que era.

- Diria mais, comendador - complementou o tal Alfredo Moreira, aproximando-se com ar sedutor e roubando a mão direita de Aurélia para beijá-la. - Aurélia está uma obra de arte. Uma obra de arte clássica, uma Diana, uma Vênus grega, talhada na perfeição do mármore.

- Sr. Alfredo, assim me ofende - disse ela, simulando desagrado. - Não percebe que com tal elogio o senhor está sugerindo que eu tenha a idade de uma relíquia? De uma ruína!

Todos riram da espirituosidade da dama, que ficou secretamente satisfeita por ter colocado Alfredo Moreira a uma distância segura.

Naquela noite, ela não estava disposta a perder tempo com os admiradores de ocasião.

Por trás da segurança que demonstrava - Mulher Maravilha dos trópicos, a mais-mais das mais-mais do Império -, Aurélia tinha o coração em alerta na expectativa do reencontro que aconteceria em breve.

Depois de uma longa espera, ela finalmente estava pronta para cobrar uma antiga dívida. Levou a mão ao colar de obsidianas negras. Mesmo sendo uma joia imprópria - tanto para sua idade como para sua condição de solteira - fora feita sob encomenda para lhe dar coragem.

De um canto do salão, a desmilinguida Leocádia Ferreira não se conformava:

- Vejam como os homens ficam em torno dela.

A filha da dona da casa tinha certeza de que suas fortes dores de cabeça começaram assim que fora apresentada a Aurélia. Por isso, evitava de todo jeito o contato com a moça, apesar da insistência da mãe naquela amizade.

- Agem como escravos. Deve ser pela fortuna que ela tem.

- Pela fortuna não é - discordava a irmã Ernestina. - São os homens mais ricos da capital. Não precisam do dinheiro de Aurélia. Eles ficam enfeitiçados é pela beleza dela.

- Mas beleza nós também temos, ora, bolotas! Como tantas outras por aí - arrematava outra moça que estava próxima, antes de abaixar o tom para confessar o que realmente achava:

- O segredo de Aurélia Camargo é mesmo a falta de vergonha. Com esses decotes, esse riso fácil, ela atiça a curiosidade dos homens. Coloca fogo no pensamento deles. Meninas, essa mulher deve fazer coisas do outro mundo.

As moças arregalaram os olhos e Leocádia ficou com as bochechas coradas. Por um momento, tentaram imaginar que coisas do outro mundo seriam aquelas que Aurélia fazia. E com medo de que esses pensamentos também corrompessem sua pureza, se esforçaram para esquecê-los em seguida.

Num ato de audácia extrema, voltaram seus olhares na direção da moça que, para sua surpresa, também as observava.

Leocádia deu um grito abafado. Ernestina sentiu a espinha gelar.

- Ela ouviu! Ai que minha cabeça já começa a doer - choramingou a mais velha.

- Calma, mana. É impossível se ouvir a essa distância - ponderou.

- Tem razão. Humanamente impossível.

Todas concordaram, sem saber até onde iriam os poderes daquela jovem.

Adelaide Amaral, que até então ouvia a conversa sem se manifestar, interferiu para tranquilizar as amigas.

- Senhoritas, Aurélia nem percebe que estamos aqui. Não veem como conversa animada com o desembargador?

Leocádia não se arriscou a conferir. Tinha receio de ser atingida mais uma vez pelo olhar afiado da moça e passar o resto do mês às voltas com compressas geladas para enxaqueca.

- Há alguma coisa nela - Leocádia disse enquanto Adelaide acenava com a cabeça para Aurélia num cumprimento. - Algo que está lá, mas que não podemos ver.

- Bobagem - Adelaide minimizou. - Ela é como nós. Uma moça casadoira à procura de um marido.

Ao dizer isso, sentiu uma presença atrás de si.

- A senhorita me daria a honra dessa dança?

Era o noivo Fernando Seixas, que acabara de chegar de uma viagem de trabalho e viera encontrá-la de surpresa.

Apesar de não se verem há meses, não foram efusivos no reencontro. Tratava-se de um noivado arranjado e, portanto, sem grandes emoções.

Com uma reverência tímida, talvez pensando "Ai, que saco", Adelaide deixou-se conduzir por Fernando até o meio do salão.

De onde estava, Aurélia Camargo observou o movimento e sua expressão imediatamente endureceu. Até Madame Ferreira, que estava a seu lado, observando o jeito com que ela abanava o leque, para depois treinar em frente ao espelho, estranhou:

- Está sentindo alguma coisa, querida? Ficou pálida.

Aurélia fez que não, furiosa consigo mesma por ainda guardar aqueles sentimentos que tanto queria negar.

Era a primeira vez desde que tudo acontecera que não conseguira disfarçar sua emoção em público.

*

"Senhora, A Bruxa"
Autor: Angélica Lopes, José de Alencar
Editora: Lua de Papel
Páginas: 224
Quanto: R$ 24,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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