Livraria da Folha

 
24/09/2010 - 11h34

Editora 34 reúne contos do autor argentino Rodolfo Walsh

da Livraria da Folha

Rodolfo Walsh (1927-1977) mal sabia que sua "Carta Aberta à Junta Militar" marcaria seus últimos dias de vida. Nela, o escritor argentino denunciou os crimes da ditadura instaurada em 1976 em seu país, e fez, de certo modo, com que o texto se transformasse em um documento de resistência aos regimes autoritários de qualquer ordem.

Divulgação
Contos literários de Walsh mesclam elementos biográficos e ficcionais
Contos literários de Walsh mesclam elementos biográficos e ficcionais

Walsh foi assassinado em 25 de março de 1977. Ele morreu minutos depois de ter postado cópias da carta para amigos e colaboradores. Segundo companheiros do jornalista, a emboscada foi armada pelo regime de Jorge Rafael Videla.

Em "Essa Mulher e Outros Contos" (Editora 34, 2010), o elemento biográfico tonifica a narrativa das micro-histórias. Os contos, traduzidos por Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni, são concentrados e sutis.

Neles, Walsh aprofunda conflitos universais e explica como as implicações humanas se estabelecem por meio deles. A dimensão política finca pés, ideologias e desdobramentos em todas as histórias contadas. "Essa Mulher", presente no volume, é considerado o melhor conto da literatura argentina do século 20.

No fim deste mês, a Companhia das Letras também lançará "Operação Massacre", série de reportagens que Walsh lançou em uma pequena publicação, e que depois foram organizados em um exemplar no ano de 1957.

Leia abaixo um trecho do conto "Nota de rodapé", de Walsh.

*

Nota de rodapé

in memoriam Alfredo de León
circa 1954

León sem dúvida queria que Otero viesse e o visse, morto e nu sob o lençol, e por isso escreveu o nome dele no envelope e dentro do envelope pôs a carta que talvez explique tudo. Otero veio e olha em silêncio o vulto do rosto coberto como uma tola charada, mas ainda não abre a carta porque quer imaginar a versão que o morto lhe daria se pudesse sentar-se diante dele, em sua sala, e conversar como tantas vezes conversaram.

Um sossego de tristeza purifica o rosto do homem alto e grisalho que não quer ficar, não quer sair, não quer admitir que se sente traído. Mas é exatamente assim que ele se sente. Porque de súbito é como se não tivessem se conhecido, como se ele não tivesse feito nada por León, e não tivesse sido, como os dois tantas vezes admitiram, uma espécie de pai, para não dizer um amigo. O fato é que ele está lá, e é ele, nenhum outro, quem diz:

- Quem diria,

e escuta a voz de dona Berta, que o olha com seus olhos azuis e enxutos num rosto largo sem sexo nem memória nem impaciência, murmurando que o delegado já está a caminho, e por que não abre a carta. Mas ele não a abre, embora imagine seu tom geral de lúgubre desculpa, sua primeira frase de adeus e de lamento.*

Acontece que com isso eles não ganham nem uma ínfima parte do que ambos ganhariam conversando, e de repente é assaltado pela obscura sensação de que tudo aponta contra ele próprio, de que a vida de León nos últimos tempos tendia a transformá-lo na testemunha perplexa de sua morte. Por quê, León?

Não é um prazer estar sentado ali, nesse quarto que ele não conhecia, junto à janela que filtra uma luz ultrajada e poeirenta sobre a mesa de trabalho onde reconhece o último romance de Ballard, o dicionário de Cuyás editado pela Appleton, meia folha manuscrita onde uma sílaba final treme e enlouquece até rebentar num borrão de tinta. Sem dúvida León pensou que com isso fazia o que devia, e por certo o homem grisalho e triste que o fita não vem recriminá-lo pelo trabalho interrompido nem pensar em quem poderá concluí-lo. Eu vim aqui, León, aceitar a ideia da sua morte inesperada e deixá-lo em paz com a minha consciência.

De repente o outro se tornou misterioso para ele, assim como ele se tornou misterioso para o outro, e tem algo de irônico que ele ignore até a forma que León escolheu para se matar.

- Veneno - responde a velha, que continua sentada muito quieta em seu canto, envolta em suas lãs pretas e cinza.

E junta as mãos e reza em voz baixa, sem chorar nem sequer sofrer, a não ser desse modo geral e abstrato como tantas coisas a entristecem: a passagem do tempo, a umidade nas paredes, os buracos nos lençóis e os supérfluos hábitos que formam sua vida.

Há um retângulo de sol e de roupa nos varais do pátio, cercado por sacadas de chapas de metal onde aflora como uma piada um espanador balançando sozinho numa nuvem de pó, desfila um turbante sem dona e assoma um velho, que espia e cospe.

Otero vê tudo isso num instantâneo, mas é outra a imagem que ele quer formar em sua mente: o rosto elusivo, o caráter do homem que por mais de dez anos trabalhou para ele e para a Casa. Porque ninguém pode viver com os mortos, temos que matá-los dentro de nós, reduzi-los a uma imagem inócua, para sempre segura na neutra memória. Aciona-se uma mola, fecha-se uma cortina, e já lhes damos julgamento e sentença, e os cobrimos com uma suave camada de esquecimento e perdão.

A velha parece embalar o espaço vazio que suas mãos medem.

- Ele nunca atrasava o aluguel,

e a lembrança do morto emerge em parcos relatos: como comia mal e o barulho que fazia à noite escrevendo, e como depois adoeceu, ficou triste e arisco, e já não quis mais sair do quarto.

- Depois ficou louco.

Otero quase sorri ao ouvir a palavra. Era fácil dizer agora que León terminou na loucura, e o boletim de ocorrência talvez até registrasse isso. Mas ninguém saberia contra o que enlouqueceu, por mais que suas esquisitices estivessem à vista de todos.

Assim, nos últimos meses, teimou em escrever à mão, alegando vagos problemas com sua máquina, ao que ele consentiu apesar dos protestos do pessoal da produção, assim como deixou passar outras coisas por sentir que não estavam dirigidas contra ele, que eram parte da luta do suicida contra algo indecifrável.

Em alguma gaveta de sua mesa ainda deve estar aquela folha solta que apareceu intercalada no último trabalho de León. Trazia uma única palavra - merda - repetida do começo ao fim com letra de sonâmbulo.

A mulher quer saber quem vai pagar as despesas do enterro, e o homem responde:

- A Casa,

*Lamento deixar inacabada a tradução que a Casa me encomendou. O senhor vai encontrar o original sobre a mesa, junto com as 130 páginas já traduzidas. O resto não oferece dificuldades, e espero que a Casa encontre quem o faça. Infelizmente, tive de ignorar suas últimas advertências. Não consegui resgatar a máquina de escrever, e este texto, assim como o anterior, chegará até o senhor em manuscrito. Fiz a letra o mais clara possível, e espero que não se aborreça demais comigo, tendo em conta as circunstâncias.

 
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