Livraria da Folha

 
23/09/2010 - 14h17

Conheça "A História de Lula: O Filho do Brasil", que originou filme na mira do Oscar

da Livraria da Folha

O filme "Lula, o Filho do Brasil", do diretor Fábio Barreto ("O Quatrilho") e estrelado por Glória Pires no papel da mãe de Lula, foi escolhido por unanimidade por uma comissão de especialistas para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar de melhor estrangeiro em 2011.

A cinebiografia é uma adaptação do trabalho da jornalista Denise Paraná, que escreveu uma tese de doutorado sobre a trajetória do presidente, publicada em 2002, e agora lança um novo livro com base em uma série de pesquisas e entrevistas recentes em São Paulo e no sertão de Pernambuco.

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No primeiro capítulo do livro "A História de Lula: O Filho do Brasil" (Editora Objetiva), a autora já apresenta o diferencial em relação a sua tese de doutorado (também disponível em outro livro): a relação do Lula com a mãe, dona Lindu. Há detalhes sobre a vida pobre em Pernambuco, a mudança para São Paulo e a adaptação à vida urbana.

A obra também cita aspectos pitorescos, como o ataque de jumenta sofrido por Lula na infância (leia no trecho em negrito abaixo), episódio que virou motivo de piada na família Silva.

*

O GRANDE SERTÃO

Lindu nasceu na fazenda de Cajarana, em Caetés, município de Garanhuns, em 1915. Filha de José Ferreira de Melo e Otília Perciliana da Silva, tinha a pele clara, cabelos loiros e olhos azuis, como seus avós italianos. Era um bebê bonito, apesar de um problema no pé direito, que o manteve levemente torto para o resto de sua vida. Ela cresceu entre seus irmãos Carmelita, Luzinete, Maria José, José Rádio, Dorico, Ananias, Estaquinho e Sérgio. Mas não conviveu por muito tempo com seu pai, morto aos 40, provavelmente de câncer.

Sua mãe Otília, ou Mãe Tili, era costureira respeitada na região. Recebendo um corte de tecido, o devolvia quatro horas depois como um terno de caimento perfeito. A viúva sustentava assim sua família. Mãe Tili ficou conhecida por sua simpatia, mas também por seu vício: era alcoólatra. Costumava trocar seus serviços de costureira, uma camisa, por exemplo, por meio litro de cachaça. O preço era baixo; o corte, benfeito; mas o resultado, quase sempre, era Otília caída no chão, inconsciente.

Lindu passou toda sua infância e adolescência na fazenda de Cajarana, onde se misturam terras do sertão e do agreste de Pernambuco. Com sua mãe e suas tias, aprendeu desde criança as tarefas consideradas femininas: os cuidados com a casa, a comida, a roupa, os animais, a roça. Pequena, embalava bonecas de sabugo de milho com cabelos vermelhos feitos de palha. Com irmãs e primas, brincava de equilibrar pedrinhas na palma das mãos ou entre os dedos. Caçava borboletas, joaninhas e outros insetos coloridos. Sua família não tinha dinheiro, mas também não era pobre para os padrões locais. Viviam como Deus mandava.

Reprodução
João Inácio da Silva, o João Grande, e Guilhermina da Silva, avós paternos de Lula
João Inácio da Silva, o João Grande, e Guilhermina da Silva, avós paternos de Lula

Lindu crescia sem sobressaltos. Esperava-se que ela se tornasse mulher, casasse, parisse muitos filhos e morresse como boa dona de casa. Por isso, Lindu não aprendeu mais do que aquilo de que precisaria na roça. O desenho das letras, dos números fazia parte de um mundo distante. Ela acreditava que seu destino mudaria apenas se Deus a levasse embora, como fez com sua irmã Maria, que morreu na adolescência, atacada por uma doença que chamavam de "mijo de rato". Sem nunca usar sapato, conhecer luz elétrica ou ter se afastado mais do que algumas léguas de onde nasceu, Lindu aprendeu a ter prazer em tudo o que a vida oferecia. Era uma alma leve. Tinha olhos para a beleza. Como suas irmãs, adorava frequentar as festas da região. E poucas pessoas eram mais festeiras do que seu vizinho João Grande, homem forte, plantador de melancia, que - ela nem imaginava - anos mais tarde se tornaria seu sogro. As festas na casa de seu João Grande eram famosas, celebradas com bacamartes e tudo a que se tinha direito. Quando os homens puxavam os gatilhos de seus mosquetões, as mulheres corriam para dentro de casa, rindo. Na mesa, carnes de todos os tipos: galinha, peru, porco, vaca e, o que nunca podia faltar, buchada de bode. Para quem quisesse havia ainda milho assado, canjica, biju, pamonha, farinha de mandioca e feijão--de-corda. De sobremesa, rapadura, marmelada, goiabada e os doces em calda, como o de jaca e até o da fruta do mandacaru.

As festas reuniam dezenas de vizinhos. Lindu adorava fazer e manter amigos. Ela também amava música e, por toda a vida, nunca deixou de cantar cantigas que aprendeu no agreste, no ritmo das colheres que batia com a mão.

Reprodução
Aristides, pai de Lula
Aristides, pai de Lula

MIRA PERFEITA

Filho de João Inácio da Silva, o João Grande, e Guilhermina da Silva, Aristides Inácio da Silva, nascido em 1913, era um moço forte que não tinha medo de trabalho. Caçador de ótima pontaria, João Inácio da Silva, o João Grande, e Guilhermina da Silva, avós paternos de Lula matava raposas e outros animais que aparecessem na sua mira. Quando o coração de caçador de Aristides mirou no de Lindu, ela caiu sorrindo, abatida de satisfação. Aristides era sedutor e, ainda assim, parecia moço de respeito. Os cabelos pretos, os olhos castanhos, penetrantes, o sorriso aberto cativaram Lindu. Ele era respeitado e admirado. Afinal, era Aristides, o caçador.

No início do século passado, nordestinos tinham poucas chances de conhecer alguém fora de seu povoado. Vivendo uma existência praticamente isolada, as famílias Broca, Ferreira e Melo, de Lindu, e Inácio e Silva, de Aristides, casavam seus filhos entre si. O amor brotava e crescia em solo próximo e bem conhecido. Casar em família era a regra. Todos se conheciam desde sempre e, na hora em que os hormônios avisavam que a vida adulta havia chegado, alguns já sabiam quem seria seu par. Quando isso acontecia, tudo mudava. Abraços, sorrisos, brincadeiras, nada mais era permitido. Conversas se transformavam em silêncio. Antes do casamento, demonstração de carinho não era bem-vista. Moça direita precisava manter-se pura. E essa castidade não era exigida apenas para o corpo. As moças também precisavam ter a mente limpa. Imaginava-se que não saber nada sobre o desejo entre os sexos seria uma forma de mantê-lo bem longe. Lindu casou sem ter recebido qualquer explicação para o milagre da procriação. Nada era mais tabu do que aquilo com que os animais se ocupavam livremente a céu aberto, na frente das crianças. Por isso, Lindu e sua irmã Luzinete acreditaram por muito tempo numa conversa sussurrada por uma prima:

- Quando uma mulher troca de roupa num quarto e um homem vê a mulher pelo buraco da fechadura... pimba! A mulher fica embuchada!

PIOLHOS

A diversão entre as mocinhas era reunir-se sob um pé de juá ou de mulungu, jogar conversa fora, revelar segredos e brincar com sementes de fava. Um dia Lindu, Luzinete e algumas primas conversavam animadas quando três rapazes apareceram em seus cavalos, querendo paquerar. Como fazia muito sol, um deles ofereceu seu chapéu para Lindu. Quando ia colocá-lo na cabeça, ela olhou para o chão e sorriu. Decidiu devolver o chapéu para o moço. Quando os rapazes foram embora, Luzinete cutucou:

- Não tinha nenhum problema você colocar o chapéu! Ele não ia achar que você não era direita só porque aceitou o chapéu!
- Tinha problema, sim. Na hora de colocar na cabeça eu vi que o chapéu estava cheio de piolhos. Um piolhento! Com esse moço eu não caso.

O vento da sorte soprou a favor de Aristides.

CASAMENTO

O casamento de Lindu e Aristides foi uma festa bonita, cheia de convidados, de comes e bebes, embalada ao som do sanfoneiro, como manda a tradição local. Os noivos, como era costume, não se casaram no civil. O que importava eram os olhos de Deus.

O casal parecia viver muito bem. Aristides era trabalhador e sabia como afagar a terra. Ela respondia ao seu carinho produzindo mandioca, milho, batata-doce, feijão. A proteína animal vinha da caça. De vez em quando, Lindu cozinhava galinha, peru, porco, bode, ou até uma vaca nos dias de festa. Aristides, montado em seu cavalo, ia comprar na feira livre de Garanhuns os itens que faltavam: querosene para o candeeiro, munição para a espingarda, açúcar, sal, sabão. Às vezes banana, biscoito e rapadura. E nunca deixava faltar água em casa. Chegava a pagar alguém para buscá-la, com o dinheirinho que ganhava na venda de farinha de mandioca, que ele mesmo fazia em um moinho próximo.

DESEJOS E SEGREDOS

Cumprindo suas obrigações de esposa, entregando seu corpo aos desejos do marido, e talvez aos seus próprios, Lindu descobriu segredos. E logo se tornou mãe. Ano a ano, os filhos chegaram. Em 1936 nasceu José Inácio da Silva, apelidado mais tarde de Zé Cuia, por usar sempre uma pequena cuia de água para molhar e pentear o cabelo.

Em 1937, veio Jaime Inácio da Silva. Em 1938, Lindu deu à luz sua primeira filha, Marinete Ferreira da Silva. Em 1939, nasceu Genival Inácio da Silva, apelidado de Vavá. O ano seguinte não foi feliz, Lindu perdeu um bebê. Foi então que fez promessa para São José, pedindo por um filho que, se fosse saudável, teria o nome do santo. Em 1942, nasceu José Ferreira da Silva, conhecido na família como Ziza e, depois de adulto, como Frei Chico. Em 1943, Maria Ferreira da Silva, a Maria Baixinha, veio ao mundo.

Em 1944 a tristeza voltou a visitar os Silva, Lindu perdeu mais um filho. No ano seguinte, conhecendo então seu corpo e os sinais de uma vida por vir, Lindu percebeu mais um filho a caminho e rezou muito por ele.

TRAIÇÃO MUDANDO DESTINOS

Aristides, o homem que Lindu tanto amava, porém, não era fiel no casamento. Mergulhado na cultura machista de sua época, orgulhoso de sua masculinidade, ele não deixava de cobiçar outros rabos de saia. Sem imaginar as aventuras do marido, Lindu cuidava dos filhos com carinho. E como suas obrigações eram muitas, acabou por aceitar a sugestão de que uma prima, com cerca de 13 anos, a ajudasse no trabalho doméstico. Apelidada de Mocinha, era uma adolescente linda, de olhos e cabelos castanhos.

Logo pegou prática no trabalho. A admiração que Mocinha tinha por Lindu, e por tudo o que pertencia a ela, inclusive seu marido, crescia a cada dia. Ninguém suspeitava que a decisão de Lindu de aceitar a ajuda da prima terminaria numa história típica de folhetim. A chegada de Mocinha, em vez de ser algo banal, provocou uma situação que mudaria sua vida e a de toda a família Silva. É impossível reconstituir a história em detalhes. Mas o fato é que Mocinha e Aristides se tornaram amantes. Não se sabe o quanto Aristides investiu nessa aventura.

Ou se foi Mocinha quem decidiu conquistá-lo. O que se sabe é que, no ano de 1945, Lindu e Mocinha estavam grávidas, ao mesmo tempo, do mesmo homem. Mas Lindu não sabia de nada. Com a esposa e a amante esperando filhos seus, Aristides decidiu partir para longe. Sua mira certeira agora não via mais raposas, mas o rumo de São Paulo. Assim, em agosto de 1945, vendeu seu cavalo e disse para Lindu que dentro de poucos dias subiria no primeiro pau de arara em direção à cidade grande. O motivo, ele dizia, era a seca. Iria ganhar a vida no Sul e, de lá, enviaria dinheiro para o sustento da família.

ADEUS

Era uma manhã cinzenta quando Aristides fechou sua mala de couro remendado. Os olhos de Lindu transbordaram. Os filhos enfileiraram-se na soleira da casa, tentando decifrar aquele evento incompreensível. Antes de partir, Aristides entregou ao filho predileto, Vavá, um antigo vidro de perfume. Com o coração aos galopes, acariciando a barriga que trazia o próximo filho, Lindu observou Aristides sumir na poeira da estrada. Agora estava só. E temia pela vida de seus pequenos e do sétimo filho por vir. Este, coitado, nasceria sem o pai.

Poucos quilômetros adiante, embaixo da sombra de uma árvore à margem da estrada, Aristides encontrou Mocinha. Caminharam juntos até a venda de onde sairia o pau de arara e partiram para São Paulo. A viagem precária anunciava ao casal que seus dias não seriam fáceis. Ao chegar ao estado de São Paulo, Aristides foi aconselhado a ir para a cidade de Santos, onde tentaria emprego como estivador. Um trabalho de acordo com suas capacidades físicas e, para seu padrão, muito bem remunerado. Além do mais, carregar peso era quase tudo o que a cidade grande poderia reservar para um analfabeto. Mas assim que Aristides chegou, sofreu um acidente. Uma lata enferrujada rasgou seu pé descalço, atingindo o osso. A infecção que surgiu no ferimento quase o derrubou para sempre. Por pouco Lindu não se tornou viúva logo naqueles dias.

NASCE LUIZ

Na tarde do dia 27 de outubro de 1945, muito longe de Aristides, Lindu se contorcia de dor. Ela esperava pela ajuda de sua parteira, uma mulher muito gorda, que logo chegaria montada em seu jegue. Experiente nas artes do nascer, a parteira que ajudou Lindu a dar à luz todos os seus filhos conhecia também os mistérios do morrer. Havia feito incontáveis partos fracassados. Conhecia muitas histórias de mães perdendo filhos, filhos perdendo mães, filhos e mães perdendo-se juntos. A mortalidade infantil levava embora um terço das crianças que nasciam no interior de Pernambuco na década de 40. A parteira sabia que, por aqueles sertões distantes da cidade grande, a roda da fortuna podia girar livremente, no sentido que bem quisesse. E tinha girado contra a vida, no parto anterior de Lindu.

Sobre o fogão a lenha, a água fervia. As crianças já tinham sido avisadas para brincar em outro lugar. Mas gemidos de sua mãe fizeram com que se aproximassem da porta. Quando ouviram um choro forte de bebê rasgando o ar, entraram. Viram a mãe ofegante, exausta. Tinha sido longo o esforço de parir uma criança tão grande. Observaram a parteira entregar o bebê enrolado nos poucos pedaços de pano que existiam na casa. Lindu sorriu ao perceber que seu filho era um menino. E parecia saudável. A parteira sorriu junto, orgulhosa do trabalho benfeito, quando Lindu disse:

- Este vai se chamar Luiz. Luiz Inácio da Silva.

SOBREVIVÊNCIA

Agradecendo a Deus pela graça, Lindu pediu aos céus que seu bebê sobrevivesse. Talvez os céus tenham ouvido suas preces, talvez um anjo tenha passado naquele momento e dito "amém". Ou, simplesmente, talvez tenha sido obra do acaso.

O fato é que o pequeno Luiz Inácio cresceu e vingou no momento de pobreza mais profundo que sua mãe conheceu. Se viver era duro ao lado de Aristides, sem ele ficou quase impossível. A vida daquele novo filho estava por um fio.

A sorte de Lindu foi o pequeno amparo de seu irmão Sérgio. Pobre como ela, Sérgio tinha uma dezena de filhos para criar, mas conseguia ajudar a irmã no roçado, na busca de água e, de vez em quando, na compra da feira. Outros parentes também contribuíram com mantimentos, água e, especialmente, o leite para as crianças, que o pequeno Luiz tomou com vontade.

A casa em que Luiz Inácio nasceu, em Caetés, no sítio de Vargem Comprida, era uma meia-água feita de estuque, caiada de branco. Tinha um quarto e uma sala, que também servia de cozinha. O chão era de terra. Não existia banheiro, nem dentro nem fora. O banho era semanal, em açudes que ficavam a 6 ou 8 quilômetros de distância.

As crianças dormiam juntas em redes, e a cama dos pais era um estrado de madeira com um colchão de palha de coco. Não existiam bancos nem cadeiras. Sua mãe muitas vezes usava como banquinho o único pilão de madeira da casa. A comida era servida no chão, em potes de barro, sobre uma esteira de palhinha. Só as crianças mais velhas usavam colheres. As menores eram alimentadas com angu e comiam com as mãos.

A água que a família bebia era transportada em latões, trazida de açudes ou de barreiros, buracos feitos na terra que serviam como reservatório de chuva. A sujeira era tanta que a água precisava ser coada. Depois, Lindu a colocava numa jarra de barro e esperava assentar. Só quando a camada de terra pousava no fundo, é que a água ainda salobra, amarelada e morna podia ser tomada. Às vezes, um sapinho, um grilo ou outro pequeno animal pulava para fora da jarra. As crianças riam.

REBANHO DE CRIANÇAS

Criados como num rebanho, Luiz Inácio e seus irmãos cresciam junto aos filhos de tio Sérgio e outros primos. Sem vestir nenhuma roupa, ou vestindo pouca coisa, já que o clima quente não exigia mais do que um calçãozinho, as crianças, descalças, corriam por toda parte. Quando a fome apertava, suas mãozinhas quebravam coquinhos, chamados de uricuri. Também gostavam de fazer biju, uma massa de farinha de mandioca que cozinhavam a céu aberto, sobre pedras. Às vezes tinham a sorte de encontrar um cajueiro, um pé de umbu carregado. Mas quando tentavam roubar melancias da plantação de seu avô, João Grande respondia com tiros de espingarda.

Quase sempre tinham como café da manhã feijão-de-corda misturado à farinha de mandioca. Ou uma espécie de mingau feito com um pouco de café e farinha. Era uma pasta indigesta, preparada para enganar o estômago das crianças por muitas horas. Nos dias de fartura comiam curau de milho ralado, cozido com um pouquinho de leite e uma pitada de sal. E se deliciavam. Para as crianças, conseguir um pedacinho de carne era diversão.

Com seus estilingues, acertavam beija-flores para assá--los enfileirados num espetinho. Luiz Inácio costumava ouvir de Vavá que os beija-flores eram tantos que pareciam um "empesto". Revoadas daqueles minúsculos seres caíam mortas enquanto as crianças gritavam, comemorando e já enchendo a boca de água. O mais divertido mesmo era caçar preá, um roedor parecido com rato. Divertido e perigoso. Precisavam fazer uma boa arataca para que aquela bolinha de pelos pudesse virar guisado. Mas o prato que agradava aos meninos também atraía as cobras. Preso na armadilha, o preá podia ser almoço de uma delas. Se os meninos pusessem a mão dentro da arataca sem olhar bem, em vez de ganhar um jantar, ganhariam um problema.

Como tantos Luízes nordestinos, Luiz Inácio recebeu o apelido de Lula. Por nunca ter sido apresentado à riqueza, Lula não sabia distinguir o rosto da pobreza. Quando estava brincando fora de casa, dividia com o gado a água do chão. E aproveitava para dar petelecos nos caramujos do fundo do barreiro. Talvez aqueles bichinhos que achava engraçados trouxessem esquistossomose. Mas naquele tempo, apenas brincar importava.

O sertão era seu parque de diversões, e seu brinquedo favorito, o pé de mulungu dos arredores de sua casa. Do alto de seus galhos, Lula se sentia rei.

Divulgação
Por conta do filme, jornalista relança livro que foi tese de doutorado
Por conta do filme, jornalista escreve livro sobre o presidente

ENJAULADO

Lula tinha um ídolo: o irmão Ziza, mais tarde apelidado de Frei Chico e quatro anos mais velho que ele. Aonde Frei Chico ia, Lula ia atrás. Um dia, quando estava com 3 anos, Lula acompanhou Frei Chico, Maria Baixinha e Jaime até a casa de um compadre de sua mãe, Luiz Custódio. Iam buscar um galão de leite. Quando chegaram, Lula viu uma jumenta com sua cria recém-parida. Ele amava animais e não teve dúvida: saiu correndo para fazer carinho no filhote. Mas a jumenta entendeu o gesto como uma ameaça e abocanhou Lula violentamente pela barriga. As outras crianças começaram a berrar, enlouquecidas, enquanto a jumenta sacudia Lula no ar. Luiz Custódio jogou seu corpo contra o do animal, tentando a todo custo tirar o menino sequestrado aprisionado naquela jaula de dentes. Mas a jumenta estava enfurecida, totalmente arredia. Não tinha jeito. Luiz Custódio tirou uma peixeira e foi sangrando o animal no pescoço até que ele soltasse o caçula de sua comadre Lindu.

Assustado, chorando, sujo e machucado, Lula foi solto. Passado o susto, o episódio se tornou motivo de piada na família.

MILAGRES

A distância entre o sítio de Vargem Comprida, em Caetés, e a cidade de Garanhuns, o centro da região, era longa. Lindu e seus filhos mal tinham acesso a médicos. No sertão nordestino era comum se apelar para um benzedor. Mas Lindu costumava pedir pessoalmente ajuda aos céus, sem intermediários. Era mulher de muita fé.

Lula ainda era pequeno quando Vavá ficou doente e parecia não ter mais chances de sobrevivência. Chegaram a colocar uma vela acesa em sua mão. Lindu resistiu. Não aceitava a ideia de perder mais um filho. E pediu ajuda aos seus santos. Não parou de rezar. Sem nenhuma explicação, num mundo em que poucas palavras eram ditas e menos coisas ainda explicadas, Vavá recuperou os sentidos e a saúde.

Lula nasceu e cresceu numa cultura que não duvidava do poder do invisível. Quando sua irmã Maria Baixinha parou de enxergar e caiu de cama, Lindu chamou Santa Luzia. E prometeu vestir a filha durante um ano com as cores da roupa da santa. Os olhos da menina nunca mais escureceram.

A VINGANÇA DOS MORTOS

A vida no sertão era dura, mas não botava medo. Medo, mesmo, Lindu e seus filhos tinham das coisas do outro mundo. O que os assombrava eram as histórias de alma penada, mortos que voltavam do além, monstros de todos os tipos. Parentes se reuniam para falar sobre um mundo povoado por lobisomens em noite de lua cheia. Mas quem apavorava mais era o Papa-figo, um velho horroroso que adorava comer o fígado de criancinhas malcomportadas. Havia ainda a "cobra mamadora", que saía escondida à noite para sugar o leite da mulher que amamentava, colocando seu rabo na boca do bebê.

As crianças mortas antes de serem batizadas recebiam o nome de "pagãozinhos". Eram enterradas em covas rasas, nas encruzilhadas do sertão. Sempre havia alguém que dizia ter ouvido seu choro numa beira de estrada. Era como se as crianças enterradas em silêncio tomassem a palavra. Mortas, elas se mantinham vivas no sentimento dos vivos.

O PAI

Aristides mandava de vez em quando algum dinheiro para o sertão. Também enviava e recebia notícias através de cartas que seus amigos alfabetizados ajudavam a escrever e entender. Cinco anos depois da ida para Santos, ele decidiu visitar sua terra. Havia tirado a sorte grande no jogo do bicho e podia dar-se o luxo.

Numa tarde de 1950, quando tinha 5 anos, Lula viu um homem desconhecido entrar em sua casa. Lindu contou que aquele era seu pai. Os irmãos mais velhos o reconheceram.

Para Lula, aquele estava longe de ser um momento de emoção. Lindu era pai e mãe. Até então, o pai não fazia falta.

Sem nenhum constrangimento, Aristides chegou com duas crianças, os filhos que teve com Mocinha. Os irmãos de Lula olharam espantados para seus meios-irmãos. Não porque o pai tivesse outra família. Mas porque as crianças usavam roupas que eles consideraram maravilhosas. Invejaram suas camisas, meias, sapatos. Foi por isso que Vavá e Frei Chico decidiram levar os dois para conhecer os segredos do sertão. Lição número um: os efeitos da urtiga sobre a pele. Se os meninos se vestiam como príncipes, era bom que conhecessem as dores de seus serviçais.

Lindu olhou apenas o lado bom da visita de Aristides e acolheu os meninos que ele trouxe. E não se sabe se foi por amor ou por acreditar que devia obediência ao marido que ela entregou seu corpo a ele. Com ou sem mágoa, com ou sem prazer, voltava aos braços de seu homem. E não demorou a sentir que estava grávida. Mas as horas estavam contadas e novamente Aristides partiu. Sua segunda partida foi ainda mais dura para Lindu. Chorando atrás da porta, ela viu Aristides levar Jaime, o filho que tanto amava e que, aos 12 anos, mais a ajudava. Tempos depois, Zé Cuia seguiu o mesmo caminho. Lindu estava sozinha mais uma vez. E mais uma vez com um filho por vir.

MENTIRAS MUDANDO DESTINOS

De 1950 a 1952 Pernambuco viveu secas terríveis. Lula viu sua família mergulhar na pobreza. Para os nordestinos, a vida parecia impossível. Era como se as nuvens se esquecessem de ser chuva. Não desaguavam. Nada mais cumpria seu papel. O chão ressecava, virava pó. A vegetação nem chegava a se tornar fruto, alimento. Tudo morria. Mas Lindu não queria para ela e seus filhos o mesmo fim. Foi então que Jaime escreveu para a mãe. Sua carta mudaria o destino de todos.

Na verdade, a carta era de Aristides, que ditou o texto para o filho escrever. Aristides disse que estava mandando dinheiro e que era para Lindu continuar por lá, cuidando bem de suas terras. Contou que a vida no Sul estava muito difícil. Mas Jaime, que se sentia sozinho e desamparado, escreveu palavras opostas:

"Lindu, vende tudo e vem para cá viver comigo. A vida aqui é melhor. Estou te esperando. Aristides."Jaime tinha muito medo da reação do pai, mas a saudade da mãe falava mais alto. Aristides pediu para ver a carta. E a olhou com cuidado. Mas era cego para o alfabeto. Na travessia da barca de Santos, comprava o jornal e fingia que estava lendo. Queria parecer um homem culto. Às vezes, quando as páginas não tinham imagens, segurava o jornal de cabeça para baixo, pois não conhecia o desenho das letras. A carta de Jaime seguiu seu caminho. E o pedaço de papel escrito com o esforço de quem se alfabetizou praticamente sozinho chegou às mãos de sua mãe. Emocionada, Lindu apertou a carta contra o peito, como se abraçasse um pouco do filho. Levou o papel para o amigo Tozinho, o dono da única venda próxima. Alfabetizado, ele era uma espécie de porta-voz local da civilização. Tozinho revelou o chamado de Jaime. Lindu acreditou, imaginando ouvir ali a voz de Aristides. Seu marido, o único homem de sua vida, a esperava. A carta trazia outro sentido para aquele momento duro de sua vida.

O PARTO

Era o ano de 1952. De pés descalços e lenço puído amarrando o cabelo, Lindu ouvia a voz do escrivão. Estava ansiosa. Seu coração parecia querer galopar para fora do peito. Naquele cartório em Caetés, estava prestes a receber sua própria certidão de nascimento. O papel significava o início de uma nova vida.

A cada instante, a possibilidade de deixar o sertão e migrar para São Paulo se tornava mais real. Lindu havia sido informada por amigos de que, na cidade grande, sua presença, sua palavra de nada valiam. Era preciso que ela existisse oficialmente. E só um papel poderia comprovar isso. Enquanto a mão do oficial deslizava tingindo o documento de azul, Lindu, registrada como Eurídice Ferreira de Melo, acreditava que nascia para o mundo. Nascia como retirante.

AO DEUS DARÁ

As notícias de retirantes que morriam na estrada não eram segredo. A travessia era longa, dura, incerta. Uma viagem sem garantias, ao Deus dará. As cruzes nas margens do caminho lembravam as vítimas daquelas estradas sem segurança. Pessoas eram transportadas como gado. Caminhões tombavam, derramando sua carga humana. O sol e a chuva castigavam. Os viajantes dormiam ao relento, às vezes embaixo do caminhão, quando a chuva engrossava. A roupa já puída tornava-se trapo. Eram dias, horas, minutos que pareciam intermináveis sobre tábuas de madeira sem encosto, os joelhos roçando o companheiro da frente.

A falta de banheiro tornava tudo mais difícil. A comida era contada. Um punhado de farinha, banana, uma asa de galinha e, para quem tinha sorte, um pedacinho de queijo com rapadura. Crianças de colo dividiam a carroceria do caminhão com velhos, moços, homens e mulheres, doentes ou saudáveis.

Apesar de saber de tudo, Lindu decidiu partir. Foi uma decisão que mudou o destino dela e de seus filhos e ficaria registrada na história. A estrada que os levou para São Paulo foi o primeiro caminho que o anônimo Luiz Inácio percorreu para tornar-se o Lula que o mundo conhece.

MORRER LUTANDO

Do alto do pé de mulungu, Lula olhava para sua casa. Ele tinha 7 anos. De longe, via sua mãe dentro da sala. Ela recolhia os objetos da família. Tirava os retratos pendurados na parede, as imagens de santo de seus altares. Lindu embrulhou suas coisas numa trouxa e levou ao amigo Tozinho da venda. Ofereceu a ele tudo o que tinha em troca de passagens para o próximo pau de arara. Pediu também aos seus filhos mais velhos que vendessem a cabra. Sua casa teve o mesmo destino. Foi entregue para um compadre que, sem dinheiro, pagou apenas a entrada.

A pobreza era de todos. Ao saber da notícia, Dorico, irmão de Lindu, decidiu tomar o mesmo rumo. Com sua mulher Laura e dois filhos, iriam juntos para São Paulo.

No dia da partida, Lula não entendia o que agitava tanto sua mãe e seus irmãos. Vavá subiu num pé de mulungu e disse que não iria descer. Não queria correr os riscos da viagem. Lindu o chamou:

- Desce Vavá. Desce filho. As coisas vão melhorar. É melhor morrer tentando que morrer aqui de fome.

Lindu era uma mulher de entregas. Entregou-se a seu marido, aos filhos, entregava-se à vida. Mas não se entregaria à morte. Preferia morrer lutando. Assim, sem olhar para trás, Lula viu sua mãe pegar os filhos, as trouxas e caminhar até a bodega do Tozinho, de onde sairia o pau de arara. Mas o caminhão atrasou dois dias e eles tiveram que esperar. Tozinho os colocou num quarto. Lobo, o cachorro de estimação, latia e uivava do lado de fora. Chamava por Lula e seus irmãos. Intuía a separação definitiva. Lobo morreu de saudade dias depois que a família partiu. Lula nunca mais o esqueceu.

Quando o caminhão finalmente chegou, trazia alguns retirantes de outros sertões. A bodega do Tozinho estava agitada. Parentes dos que iam se abraçavam, choravam um último adeus. No meio da agitação, Lula viu uma coisa mágica: um homem deslizava sobre duas rodas. Ficou paralisado, sorrindo. Lula tinha descoberto a bicicleta. E nem sabia quantas máquinas, invenções, ainda veria. O caminhão partiu. Instalada no desconforto do pau de arara, a família Silva viu seu pedaço de terra sumir no horizonte queimado pela seca. A poeira que o caminhão levantava fazia desaparecer o mundo que Lula conhecia. De agora em diante, tudo era novo. Nenhuma referência parecia segura diante daquilo que começavam a ver.

A TRAVESSIA ENTRE DOIS MUNDOS

Na sua terra, Lindu e seus filhos viviam integrados à natureza. Acordavam quando o sol acordava, dormiam quando ele dormia. O costume só era quebrado em noites de lua cheia, quando Lula e seus irmãos gostavam de brincar no rastro prateado que o chão refletia. O contato mais direto com o mundo industrial acontecia na bodega do Tozinho. Em algumas noites de quinta-feira, ouviam Luiz Gonzaga pelo rádio de válvulas do amigo. O músico estava longe, mas também perto. Apesar dos chiados, Gonzagão era quase tão concreto quanto os sanfoneiros das festas no sertão.

Sobre o país onde moravam, Lindu e seus filhos sabiam muito pouco, quase nada. O nome do presidente talvez alguém tivesse dito. Não conheciam o mapa brasileiro. Outros países pareciam menos concretos que história de lobisomem.

O mundo dos Silva se resumia a sua família, parentes e vizinhos. O lugar mais longe que haviam visitado era Garanhuns, a uma distância de três horas de caminhada. Nunca haviam visto
mar, rios, lagos. Conheciam apenas os alimentos do agreste. Não conheciam outras raças humanas.

Para alguns retirantes, São Paulo era a terra prometida do Antigo Testamento, onde todos seriam felizes. Para outros, uma mistura de encantamento e terror. A São Paulo que era para ser luz, a luz no fim do túnel, às vezes se revelava escuridão. Sabiam que a cidade grande tinha engolido homens que nunca mais cuspiu.

Sem notar, Lindu estava repetindo a história de seus parentes europeus. De mãos vazias, deixava para trás sua vida, os amores que nunca mais veria, como sua Mãe Tili, que morreu quatro anos depois.

O pequeno Lula começava a aprender que a vida era imprevisível. Mas não tinha dimensão da grandeza daquele momento, quando cruzava dois mundos. Seguia junto a outros retirantes, a meio caminho entre a miséria e a glória. Eram como lagartas esperando por seu dia de borboleta. O caminhão seguia. Novas paisagens apareciam. Outra vegetação. Outra arquitetura. Lula nunca havia visto sobrados, prédios. Quantos caminhões, meu Deus. Carros... Nunca tinha visto carros. Para aquele mundo novo, Lula e seus companheiros de jornada tinham olhos e a alma virgens.

TREZE DIAS E TREZE NOITES

Em uma manhã de dezembro de 1952, o motorista do pau de arara estacionou seu caminhão numa movimentada rua do bairro do Brás, em São Paulo. Era o ponto final. Foram 13 dias e 13 noites de viagem. Lula e os seus desembarcaram de olhos arregalados. Não imaginavam que existia tanta gente. Lindu aproximou os filhos de seu corpo para que nenhum deles se perdesse naquele mundão de Deus. Com tio Dorico, procurou um táxi e mostrou para o motorista a carta amassada de Jaime com seu novo endereço.

Pela primeira vez, os Silva entravam em um automóvel. Seus olhos exaustos de novidades viram ainda a recém-inaugurada Via Anchieta. Mais surpreendente foi a barca que tomaram para encontrar Aristides em Vicente de Carvalho, antiga Itapema, distrito do município de Guarujá.

Para alguém acostumado a ver pequenas quantidades de água, deslizar entre navios gigantescos parecia coisa de outro mundo.

Dentro da barca, Lula e seus irmãos, sujos e descabelados, seguravam em suas trouxas com roupas puídas fotos de família, santos e a imagem de Padre Cícero. Com Sebastiana no colo, ainda com um ano e pouco, Lindu carregava o maior patrimônio na vida, os filhos que teve com Aristides. No peito, levava a esperança de viver dias melhores com o homem que tanto amou. A mãe de Lula acreditava que sua vida recomeçaria naquele instante.

Reencontrar Aristides e viver com ele era o que Lindu mais desejava. Logo, a barca atracaria. E ele estaria ali, de braços abertos. Lindu estava emocionada. Sua filha mais velha, Marinete, e o mais velho entre os homens, Vavá, entendiam a importância do momento. Maria Baixinha, Ziza e Lula traziam no peito apenas a palavra espanto. Sebastiana, a caçula que Aristides ainda não conhecia, chupava o dedo.

A CHEGADA

Quando desceram da barca, tio Dorico conseguiu informações sobre Aristides. Ele estava próximo, e alguém foi avisá-lo de que sua família havia chegado. Aristides empalideceu. Que diabo é isso? Chamou Jaime, que descansava recostado num toco. Os dois saíram rapidamente. Jaime não conseguia disfarçar o medo da reação do pai quando descobrisse que ele era o responsável pela surpresa. Mesmo assim, seu coração dava pulos de alegria. Em frente a um bar, Lindu e seus filhos esperavam ansiosos. Mas seus sorrisos se dissolveram quando olharam nos olhos de Aristides. Viram neles a cor da raiva. A boca contraída de indignação. Depois de alguns segundos de silêncio, Aristides disse:

- Cadê o Lobo?
- Lobo? - perguntou Lindu.
- O cachorro. Meu cachorro! Cadê? Por que não trouxeram?

*

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