Livraria da Folha

 
27/09/2010 - 18h38

Em entrevista, Moacyr Scliar define partidos políticos como grupos de interesses

PAULA DUME
colaboração para a Livraria da Folha

Na virada da década de 1930, o gaúcho Valdo conhece e se apaixona pelo comunismo. Decide embarcar de forma clandestina para o Rio de Janeiro em um trem, a fim de entrar no Partido Comunista e buscar um sentido para sua vida. À época, o dito "partido" possuía outro sentido.

Questionado pela Livraria da Folha sobre qual grupo nos rege hoje, o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar, 73, acredita que houve um esvaziamento das ideologias que se propunham a mudar o mundo. "Hoje, a política está mais focada em causas pontuais, e os partidos são frequentemente grupos de interesses", disse.

O protagonista de "Eu Vos Abraço, Milhões" (Companhia das Letras, 2010), novo romance de Scliar, se torna um operário a mais da classe assalariada no Rio. É obrigado a privilegiar mais sua própria sobrevivência do que a militância.

Divulgação
Escritor e médico Moacyr Scliar conviveu com militantes de gerações posteriores; "Eu mesmo fui um deles", disse
Escritor e médico Moacyr Scliar conviveu com militantes de gerações posteriores; "Eu mesmo fui um deles", disse

"Era um tom muito mais romântico, mais idealista. Hoje as pessoas estão mais céticas, mais descrentes - mas também mais realistas. Nosso desafio hoje é manter o sonho, o ideal, mas de forma prática, concreta. E isto é possível."

Durante a conversa, Scliar --que tem mais de 80 livros lançados no Brasil e obras publicadas em mais de 20 países-- explicou por que escolheu uma citação da "Ode à Alegria", do alemão Friedrich Schiller (1759-1805), para título do livro, como fez o levantamento das informações para compor um cenário ficcional e reverberar os anseios de uma geração, entre outros temas.

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

*

Livraria da Folha - O senhor se baseou em quais documentos históricos para compor a trama de "Eu Vos Abraço, Milhões"?
Moacyr Scliar -Minhas fontes foram a história dos movimentos revolucionários no mundo e no Brasil, textos sobre a época em que decorre o livro (anos 20 e 30) e a história do Cristo Redentor. Mas só usei essas informações para compor o cenário em que se desenrola a narrativa, que é fundamentalmente ficcional, ainda que reflita a experiência de vida de uma geração.

Livraria da Folha - Chegou a falar com alguém que presenciou esse clima para moldar o personagem Valdo?
Scliar - Não falei com ninguém que viveu esses episódios, e o Valdo é essencialmente ficcional. Tudo que acontece com ele foi imaginado.

Livraria da Folha - Por que escolheu o cenário em que o Partido Comunista se instalou no Brasil? Pensou em outro tipo de ambientação?
Scliar - Porque este foi o maior projeto de transformação social do século 20. Era, enfim, a realização do sonho de igualdade e de justiça social, principalmente num país como o Brasil, tão desigual e injusto. Foi um sonho que minha geração partilhou e eu falei, portanto, daquilo que conheci e que senti.

Livraria da Folha - Participou de algum movimento político ou teve amigos envolvidos? Qual sua proximidade com o período?
Scliar - Não, não participei diretamente, mas convivi com militantes de gerações posteriores. Eu mesmo fui um deles.

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Valdo embarca clandestinamente para o Rio para aderir ao partido
Valdo embarca clandestinamente para o Rio para aderir ao partido

Livraria da Folha - O título é uma citação da "Ode à Alegria", de Friedrich Schiller, e foi utilizada também por Ludwig van Beethoven (1770-1827) em sua "Nona Sinfonia". O tom empregado por Schiller à época difere da situação na qual vivemos hoje?
Scliar - Era um tom muito mais romântico, mais idealista. Hoje as pessoas estão mais céticas, mais descrentes - mas também mais realistas. Nosso desafio hoje é manter o sonho, o ideal, mas de forma prática, concreta. E isto é possível. Há muitas causas que justificam nosso esforço: a questão ecológica, a luta contra a intolerância, o preconceito e o fanatismo, as reformas sociais que ainda são necessárias.

Livraria da Folha - Vivemos, de certa forma, anestesiados ou conformados?
Scliar - Eu diria que somos mais realistas.

Livraria da Folha - "Tomamos partido" em que sentido? Qual partido nos rege, se é que ele existe?
Scliar - Houve um esvaziamento muito grande das ideologias que se propunham a mudar o mundo. Hoje, a política está mais focada em causas pontuais [ecologia], e os partidos são frequentemente grupos de interesses.

Livraria da Folha - Devemos mudar de tom como Schiller recomenda logo no início da Ode?
Scliar - Sim. Eu diria que precisamos de um tom mais moderado, porém mais próximo da realidade.

Livraria da Folha - O senhor escolheu esse título, porque tem algo de terno ("abraço") e de força ("milhões") ao mesmo tempo?
Scliar - Eu li esta frase pela primeira vez no texto de um lendário comunista húngaro (que depois abandonou o Partido), Arthur Koestler [1905-1983]. Numa de suas muitas mudanças, ele brigou com os companheiros, depois quis se reconciliar e mandou-lhes uma carta com o verso de Schiller. Que, de fato, envolve uma contradição; num ímpeto generoso queremos abraçar as pessoas, mas é impossível abraçar milhões. Esta generosa contradição é característica da utopia.

Livraria da Folha - Como introduziu a impetuosidade e também a conformação (quase forçada) do personagem Valdo no curso da evolução do Partido?
Scliar - Valdo é um adolescente instável, imaturo, e isto tornaria a ele difícil tornar-se um membro disciplinado e obediente do Partido. Mas esta contradição, tão humana, é uma das bases do romance.

 
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