Livraria da Folha

 
27/11/2009 - 13h42

Autor de "Clarice," diz ter um compromisso pessoal com a cultura brasileira

PAULA DUME
colaboração para a Livraria da Folha

Eleito o livro do mês na amazon.com e escolhido como um dos cem livros do ano pelo The New York Times, "Clarice," (Cosac Naify, 2009), a biografia de Clarice Lispector (1920-1977), do norte-americano Benjamin Moser, foi publicada nos Estados Unidos em agosto de 2009, com o título "Why This World: A Biography of Clarice Lispector" ("Por que Este Mundo: Uma Biografia de Clarice Lispector"), e lançado na última semana no Brasil, com tradução de José Geraldo Couto.

Texano de Houston, Moser, que fala seis línguas, queria aprender chinês até descobrir que não levava muito jeito para os ideogramas. Acabou matriculando-se em um curso de português. Conheceu Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Jorge Amado, até se deparar no terceiro semestre do curso com "A Hora da Estrela", de Clarice. Logo na primeira página, reconheceu o talento e assumiu o encantamento pela autora.

Em 2005, quando soube da homenagem a ela na Flip, ele embarcou para o Brasil no dia seguinte. Desde então, se dedicou a ela e ao mundo dela. "Essa foi a minha grande ilusão, fazendo o livro da Clarice para trazê-la para fora", disse.

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Tessa Posthuma de Boer/Divulgação
O autor Benjamin Moser levou cinco anos entre escrita e pesquisa para finalizar a obra; descobriu até o tipo sanguíneo da escritora
O autor Benjamin Moser levou cinco anos entre escrita e pesquisa para finalizar a obra; descobriu até o tipo sanguíneo da escritora

Em entrevista à Livraria da Folha, Moser esmiuçou sua paixão e admiração pela escritora considerada "bruxa", a carga que Clarice carregava por conta de não salvar a mãe da doença, adquirida durante a violência dos pogroms (que assolaram a Ucrânia na virada da década de 1910 para 1920), o peso dessa falha ecoando em sua vida e obra por meio de temas herméticos e existenciais, entre outros assuntos.

O colunista da "Harper's Magazine" e colaborador do "The New York Review of Books" assumiu ter um compromisso um pouco pessoal com a cultura brasileira. "O Brasil não precisa de mim para saber quem é Clarice. Mas, o mundo, às vezes, precisa de gente que traduza, que interprete, porque senão a cultura brasileira fica por aqui e as coisas que o Brasil produz, que são muito valiosas também para o mundo, não saem", afirmou.

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Livraria da Folha - Lê-se o título como "Clarice vírgula". É uma espécie de vocativo? Gostaria que você falasse sobre isso.
Benjamin Moser - Em "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", Clarice começa com uma vírgula, e o livro termina com dois pontos. É uma homenagem a ela. A vírgula é porque a gente nunca vai esgotar a Clarice. Eu posso ficar mais de cinco anos fazendo isso, não vou chegar ao fim. Cada vez que pego o livro dela, reparo numa frase, numa coisa, é uma riqueza inesgotável, é um privilégio ficar todo esse tempo com ela. Foi uma das experiências que eu mais apreciei na minha vida. Eu posso falar dela o dia inteiro.

Livraria da Folha - Na introdução, você descreve quando Clarice retorna do Rio de Janeiro para a Itália, em 1946, e depois o contato e a sensação dela diante da esfinge, no Egito. Por que você escolheu 1946 para iniciar o livro?
Moser - Eu estava querendo que Clarice saísse pelo mundo. Aqui todo mundo já sabe quem é. A jovem Clarice de 20 e poucos anos vai viajar e não tem medo. Ela tem essa virada desafiadora, como a esfinge. Gostei da imagem das duas esfinges se olhando desse jeito. As duas misteriosas.

Livraria da Folha - Quanto tempo você levou entre a pesquisa e a escrita?
Moser - Isso é uma coisa um pouco complicada. Você escreve ao mesmo tempo que está pesquisando. No meu caso, eu estava escrevendo enquanto pesquisava. A cada dia você vai aprendendo mais, é um processo. O livro levou cinco anos. Eu diria que fiquei dois anos e meio na pesquisa e outros dois e meio na escrita. Só que enquanto eu escrevia, também estava fazendo pesquisa.

Livraria da Folha - O que mais lhe chamou a atenção durante a pesquisa?
Moser - Acho que foi a viagem à Ucrânia, a descoberta do que havia passado lá, e a descoberta desse passado tão sangrento. Vendo a foto dessa senhora bonita, loira, no Rio de Janeiro, você nunca pensaria que ela viria de uma miséria dessas. Não podemos compreender o que é isso. Ela vinha de uma miséria absoluta.

Livraria da Folha - Você ficou impressionado com Clarice?
Moser - Fiquei deslumbrado logo na primeira página. É um amor. Quando você ama uma pessoa, muitas vezes, só vendo do outro lado do quarto, do restaurante, só vendo a pessoa. Foi por aí. Eu não esperava isso. Eu estava fazendo um curso para aprender uma língua que você nunca sabe se vai ser útil, e essa foi a grande descoberta. E foi a partir de Clarice também que eu descobri não só ela, mas a raiz dela. O que me levou pelo Brasil inteiro. Eu fiquei apaixonado por ela e queria saber mais. Quando você faz uma coisa dessas, você também tem que esboçar o mundo ao redor dela. Acontece que a Clarice, embora não fosse de ficar em mesa de café, como foi o caso de muitos escritores homens, ela tinha uma convivência muito importante com outros escritores como Fernando Sabino e Rubem Braga, e com outras figuras da cultura brasileira como Maria Bethânia, Chico Buarque e Caetano Veloso. É uma turma muito representativa do que era esse país e ainda é. Dizer que você pode conhecer o Brasil por uma brasileira soa um pouco complicado, de certa maneira. Tudo isso faz parte do mundo da Clarice e tudo isso ficava me empolgando, porque você acha que você está entrando por uma porta e está entrando em uma mansão. Você está entrando num quartinho que é Clarice, não que Clarice seja um quartinho, ela também é uma mansão. É um luxo poder ficar estudando muito tempo este mundo.

Livraria da Folha - No livro, há dois capítulos chamados "O Ovo É Branco Mesmo" e "Galinha ao Molho Pardo" que fazem referências ao conto "O Ovo e a Galinha" e ao romance infantojuvenil "A Vida Íntima de Laura". Esses elementos acabaram influenciando a escolha desses títulos? Durante a sua pesquisa, você localizou os agentes suicidas que Clarice fala no conto na escrita e na própria vida dela?
Moser - O ovo é o começo da galinha, e a galinha ao molho pardo é o final, é o que fica da galinha. Ela cresceu no Recife com galinhas e tem fascínio por galinhas. Tem muita galinha na obra dela. É uma coisa que para mim tem vários lados. Eu acho que a primeira é a maternidade que é uma questão central para a Clarice. A figura da galinha morta remonta à mãe dela que foi martirizada pela violência anti-semita da Rússia, antes de ela nascer. Tem um lado de ela escrever muito sobre pinto e ovo, isso é uma coisa mais fofa. O outro lado, essa coisa da galinha ao molho pardo, demonstra o lado violento da Clarice, uma coisa muito forte que eu acho que vários críticos têm falado. Eu acho que quem se aproximou da Clarice sempre fica muito chocado com isso, porque não é uma violência da televisão e do cinema. É uma violência muito mais forte do que a explosão, o carro ou a polícia. Quem já leu "A Paixão Segundo G.H." não esquece mais. É uma violência universal, é o fato de o mundo estar aqui totalmente à toa e não ter lógica para isso. Essa questão do ovo e da galinha ao molho pardo também recorre muito a essa receita, um pouco nojenta, cozinhando o animal, o próprio sangue e as pessoas comendo com arroz bem solto.

Livraria da Folha - Tanto que ela fala que se não comêssemos os bichos, comeríamos gente com o seu sangue...
Moser - Isso. Muita gente está sendo comida, inclusive a própria família dela. Os pais dela foram martirizados e perseguidos. Mas, ao mesmo tempo, a moralidade da Clarice não é uma moralidade vegetariana. Eu sou vegetariano, mas é uma opção pessoal. Eu não acho que não comendo galinha vou salvar o mundo, é uma coisa estética minha. Ela rejeita isso totalmente, reconhece a violência do mundo e não tenta fugir dela. Essa violência é o que muitas vezes choca as pessoas.

Livraria da Folha - Ela disse que temos que respeitar a violência.
Moser - Tem que respeitar. É uma coisa muito importante na Clarice. Uma das características mais importantes, para mim talvez a mais importante na parte filosófica, é a moralidade do mundo. Não tem nada que nós, seres humanos, podemos fazer para mudar o mundo. É uma coisa que ela aprendeu muito jovem, quando ela nasce para salvar a mãe e não salva. Não tem jeito para o mundo, embora na obra dela, ela evolui muito nisso e vai tentar fazer uma coisa bem pequena dela mesmo: falar do indivíduo, da pessoa, da alma, dessas questões que atormentam a todos nós sem que tenha uma solução. A moralidade não tem mal, é uma invenção humana para nos sossegar, mas não existe mesmo.

Livraria da Folha - Aliás, ela fala bastante em invenção nas obras, até invenção de si própria.
Moser - Ela fala que a primeira escolha do ser humano é a escolha da própria máscara. 'Como eu vou estar no mundo, quem que eu vou ser?'. Isso é uma coisa que ela nunca resolve. De um lado, ela quer ser uma dona de casa, ela é um pouco careta, um pouco correta.

Livraria da Folha - Como as personagens Teresa Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, se bem que a Ilka existiu realmente. Ela fala como as moças tem que se comportar e se embelezar, por exemplo.
Moser - Sim, ela dá até receita de maionese. Tem um lado de Clarice importantíssimo. Ela era de fato mãe, dona de casa, diplomata e jornalista. Ela tem uma vida muito normal, em muitos sentidos. Mas a normalidade dela coexistia com uma genialidade artística que nem sempre combinava com a preparação da maquiagem e dessas coisas. É por isso que a Clarice fascina a gente, eu acho, porque ela tem de tudo. Ela não escolheu uma máscara e foi por aí. Ela estava se inventando sempre pela escrita também.

Livraria da Folha - Clarice fala que as pessoas tem que ter firmeza para encarar a vida. Na escrita, ela sempre faz alguns alertas. Por que?
Moser - Porque ela precisava de coragem. Ela foi uma mulher corajosa. Não só de enfrentar o dia a dia que todos nós temos que enfrentar, mas a coragem da Clarice é esse confronto que ela trava ainda menina, aos nove anos, quando a mãe dela morre. Ela já está desafiando Deus e o mundo inteiro. E isso precisava de uma coragem danada. É isso que talvez não temos. Eu não tenho coragem de enfrentar Deus todo dia. Tenho meu trabalho, tenho que levar roupa para a lavanderia, fazer comida, as coisas que temos que fazer. Ela, ao lado disso, fascina as pessoas justamente porque ela fez coisas tão corajosas que pouquíssima gente consegue fazer. Então, a gente a vê fazendo, com um pouco de admiração.

Livraria da Folha - Em "O Búfalo", ela não nomeia, apenas cita "a mulher", durante o conto inteiro, assim como no livro infantil "A Mulher que Matou os Peixes". Como era a relação da Clarice entre o sujeito indeterminado no feminino, com a mulher sendo universalizada, e a mulher sendo determinada em outras obras?
Moser - Eu diria que a mulher nomeada não faz diferença, é uma escolha estética. A mulher de "O Búfalo" vai para o zoológico e a Ana ao Jardim Botânico para enfrentar justamente essa vida que não tem nome, essa vida animal, a vida do búfalo e da vitória-régia. É essa vida que está dentro de todos nós, uma vida que não tem nome, que não tem sexo, que não tem nacionalidade e linguagem. Nessa vida anônima, o símbolo maior é justamente a barata. Porque a mulher G.H. é uma mulher à toa, também não é nomeada. Não sei o que seria o G. Ela é a barata. Diante dela tem o mesmo sangue, a mesma matéria viva que tem na barata. É uma coisa muito incômoda para a gente pensar que somos tão à toa quanto a barata, mas somos, isso é o que Clarice nos ensina.

Livraria da Folha - Clarice diz que a esfinge não a decifrou e ela não decifrou a esfinge. Gostaria de saber se você foi decifrado por Clarice e se ela o decifrou.
Moser - Ela me decifrou por inteiro, ela conhece a gente, isso não tem dúvida. Se eu a decifrei? Eu acho que eu fiz o que eu pretendia fazer nesta obra que era conviver com ela e entender certas coisas que eu não entendia sobre ela, sobre a vida dela, de onde vinha. Lendo-a, a gente fica com curiosidade de saber quem é essa mulher. Agora eu sei muitíssima coisa sobre Clarice. Eu sei o tipo de sangue dela. É B+. Eu não sei o meu, sabe? Muita coisa eu sei sobre ela, quem ler o livro vai saber também. Tem de fato muito mistério em Clarice.

Livraria da Folha - E ela fala que o mistério dela é não ter mistério.
Moser - Não tem, mas no caso dela é o mistério da criação, o mistério de uma grande artista, de um talento do tamanho que ela teve. Eu acho que isso sempre vai ficar misterioso.

"Clarice,"
Autor: Benjamin Moser
Editora: Cosac Naify
Páginas: 648
Quanto: R$ 79,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou no site da Livraria da Folha

 
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