Livraria da Folha

 
07/01/2010 - 19h15

"Quero ser Paulo Coelho", diz vencedor do "Big Brother"; leia trecho

da Livraria da Folha

Na próxima terça-feira (12), a TV Globo estreia a décima edição do "Big Brother Brasil", seu principal investimento para o período das férias. O reality show serve ainda para lançar modelos para revistas de nudez, personagens para programas humorísticos e até livros.

Em 2005, após a fama de vencer a quinta edição do "BBB", o então professor universitário Jean Wyllys lançou o livro "Ainda Lembro" pela editora Globo. Ele ganhou popularidade ao assumir sua homossexualidade na TV. O ex-BBB ainda ensaiou lançar um segundo livro pela Globo, mas o projeto não decolou.

O livro tem duas partes. Na primeira, ele conta como a vitória no "BBB" afetou sua vida. A segunda parte é composta por crônicas e contos antigos, premiados pela Fundação Casa de Jorge Amado.

"Quero ser lido, circular, estar nas prateleiras das livrarias; quero ser Paulo Coelho", diz Wyllys, no começo da obra.

Segundo a assessoria da editora Globo, "Ainda Lembro" está na quinta reimpressão.

Leia trecho.

*

Palavra, palavra, se me desafias, aceito o combate. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Parece óbvio e também oportunista que um escritor, ao fim de um confinamento de oitenta dias numa casa, com um grupo de pessoas que diminuía a cada semana, escreva um livro sobre essa experiência. Mas o que pode um escritor fazer de suas experiências a não ser transformá-las em palavras e, depois, em livro? Sim, sou escritor, com livro publicado e tudo (em minha opinião, escritor é todo aquele que escreve, mesmo que seja para encher gavetas empoeiradas; se eu considerar a opinião daqueles para os quais escritor é apenas quem já publicou, continuo sendo um escritor). E, como todo escritor - embora alguns finjam que não -, quero ser lido, circular, estar nas prateleiras das livrarias; quero ser Paulo Coelho. Como bem diz Antônio Torres, em Um táxi para Viena d'Áustria, o escritor é um artista, e artista é igual a puta do cais do porto: tem de estar na janela para aparecer.

Pensei muito antes de aceitar o convite para escrever este livro, que mistura memórias do confinamento na casa e de minha vida em Alagoinhas e Salvador - uma certa reflexão sobre a existência e as voltas que o mundo dá. Primeiro, pensei na pressa com que o faria e no fato de que ela, a pressa, sempre conspira contra a perfeição (mas quem é e o que é a perfeição?): queria fazer um livro que não virasse papel para embrulhar peixe no dia seguinte; espero que tenha conseguido. Em seguida, pensei nas críticas ou na indiferença dos que definem o que é boa ou má literatura (para mim, eles deveriam se perguntar quando é literatura). Pensei, então, que alguém que venceu a fome e a pobreza, que sobreviveu às chacotas e à violência física contra gays, e que conquistou um lugar ao sol depois de um confinamento de oitenta dias, também há de sobreviver à maledicência, à arrogância, à hipocrisia e ao cinismo de intelectuais não premiados pela vida. Aceitei, portanto, escrever este livro. Como diz o povo, ladram os cães e a caravana segue.

Quando me perguntam por que quero escrever, costumo citar uma fala do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, que também serviu para responder por que participei do Big Brother Brasil. No momento, ela serve também para responder por que aceitei escrever este livro: "Para chatear os imbecis; para não ser aplaudido depois de seqüência dó de peito; para viver à beira do abismo; para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público; para que conhecidos e desconhecidos se deliciem; para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo porque, de outro jeito, a vida não vale a pena; para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito".

A idéia de fazer este livro surgiu depois que o apresentador Luciano Huck, muito gentilmente, pediu-me que escrevesse um texto para ser lido em seu programa, sobre os meus anseios e as impressões após a saída da casa. O texto emocionou os presentes, em especial a apresentadora Ana Maria Braga e os atores Christiane Torloni e Edson Celulari. Edson chegou a elogiar a minha lucidez e, em seguida, citar o poeta Fernando Pessoa. O texto chamou a atenção dos editores, que consideraram a possibilidade de as pessoas que torceram por mim (e até das que não torceram) estarem interessadas em ler exatamente o que eu tenho a dizer sobre aquela experiência.

Portanto, aqui estou eu contando e refletindo da maneira mais honesta possível; e, ao mesmo tempo, tentando construir beleza e emoções com palavras; em síntese, aqui estou eu tentando fazer literatura, seja ela o que for ou quando for. Escrever é imperativo em minha vida, embora eu prefira viver, já que a vida é sempre mais bonita, mais feia ou mais intensa que qualquer representação literária. Ao contrário de Clarice Lispector, que afirmava só estar viva quando escrevia, adoro a vida propriamente dita, louca às vezes, e com o risco de ser breve, pois, quando escrevo, sempre morro um pouco, porque acabo cedendo parte de meu sopro vital na construção de outras vidas em palavras.

Divulgação
"Ainda Lembro", de Jean Wyllys, vencedor da quinta edição do "Big Brother Brasil", reality, em 2005
"Ainda Lembro", de Jean Wyllys, vencedor da quinta edição do "Big Brother Brasil", em 2005

CASA

A saudade é o pior tormento É pior do que o esquecimento. CHICO BUARQUE

Guardo, inteira, em mim, a casa que mandei um dia pelos ares
E a reconstruo em todos os detalhes, intactos e implacáveis. ADRIANA CALCANHOTTO

Sair da casa, atravessar seu corredor escuro - espécie de limbo que separava a porta de dentro (a mais próxima ao interior da casa) da porta de fora (a que ficava perto da platéia), e por onde transitavam as câmeras - como um vencedor, trouxe-me uma alegria, uma satisfação e uma felicidade que palavra alguma jamais irá conseguir representar a contento. A sensação era a de ter chegado ao fim do labirinto, à porta de saída, sem ter sido sequer arranhado pelo monstro que não deixou os outros moradores inteiros.

Penso, hoje, que minha tática para escapar daquele labirinto, embora menos fantástica que a de Ícaro, revelou-se menos dolorosa e frustrante: eu simplesmente driblei várias vezes a fera - a paranóia, o conchavo e o paredão - e segui em busca da chave da porta da frente (e eu a quero para sempre, como recomenda Roberto Frejat, do Barão Vermelho); Ícaro, por sua vez, saiu do labirinto voando, mas com asas de cera que não resistiram aos raios do Sol nem à sua ambição desmedida. Entretanto, apesar da indescritível felicidade de chegar vitorioso à saída de um labirinto e de estar chamando a casa assim, de labirinto, começaria tudo outra vez, entraria lá novamente se preciso fosse. Até porque, no dia em que chegamos à casa, após criteriosa e sigilosa seleção, a porta de fora (a mais próxima da platéia) funcionava, para cada um de nós, como a saída de nossos labirintos individuais; como abertura para uma vida melhor.

No meu caso específico, entrar na casa significava correr um risco que, até então, havia adiado em nome do bem-estar de meus irmãos e da minha mãe - sempre fui arrimo de família. Adiar o risco entediava-me porque sei que uma vida sem perigo não é vida, e que viver a vida sem uma aventura nem sequer é transformá-la em um hiato estúpido entre nascer e morrer. Sim, começaria tudo de novo. Correria o risco uma outra vez. E sinto saudades de tudo que vivi na casa. Saudade que faz doer a alma e até o corpo. Ela dói porque sei que não há tempo que volte. Alguns perguntarão: as imagens daquele tempo não servem para matar a saudade? Respondo que as imagens registram, mas não retêm a intensidade das cores e dos sabores presentes na experiência. As imagens são como vitrais não vazados pela luz, a luz ainda presente nas lembranças - gozosas, gloriosas ou dolorosas.

Recordo-me que, em nossa primeira semana na casa, li um conto de Clarice Lispector que por lá circulava no qual identifiquei - com uma ponta de tristeza, é certo - uma frase que dizia mais ou menos o seguinte: éramos felizes e estávamos dispostos a não enxergar os defeitos uns dos outros. De fato, queríamos o melhor de e para todos naquela semana. Ríamos, conversávamos, nadávamos, malhávamos e ocupávamos todos os cômodos da casa que era nossa. Muitas vezes, quase voltamos a ser crianças e por pouco não recuperamos por completo aquela coisa morna e ingênua que havia ficado no caminho. Ah, que saudade! Como dói lembrar!

Mesmo quando a força da grana começou a destruir a paisagem bela e a casa iniciou seu mergulho no vazio e no silêncio, ainda assim os momentos marcaram; as experiências resultaram em lembranças que, hoje, despertam saudades. Como disse antes, sinto saudades até mesmo do que doía: entre outras coisas, não poder assistir às telenovelas (elas são uma paixão que carrego desde a infância). Sem as novelas, sobrava tempo para o papo furado. A saída de cada morador também doía, mas, na noite da subtração e da separação, dançávamos e cantávamos juntos no jardim: momento saudoso, sem dúvida.

Cada morador que se despedia levava consigo uma cadeira e uma cama, deixando um perfume de morte no ar, embora soubéssemos que a vida continuava lá fora (só não sabíamos como). Aliás, estar para sair da casa - situação que ficou conhecida como "estar no paredão" - era um quase morrer. Quase morri cinco vezes. Penso na situação de quem, de fato, tombou no paredão cubano ou perdeu nele um companheiro. Hoje, depois de cinco passagens por um paredão fictício, entendo melhor o ódio que o escritor (e também gay) Reinaldo Arenas destilou em seu Antes que anoiteça, contra a revolução cubana. Mas voltemos à saudade da primeira semana, a maior de todas as saudades. Naqueles dias, nós achávamos - pelo menos eu achava - que tudo era para sempre. E, mesmo contrariando Renato Russo, que diz, em "Por enquanto", que o "pra sempre" sempre acaba, algo daqueles dias ficou em minhas lembranças e dá saudade. Por muito tempo, nada irá apagá-lo. Nada vai conseguir mudar o que ficou.

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"Ainda Lembro"
Autor: Jean Wyllys
Editora: Editora Globo
Páginas: 112
Quanto: R$ 14,90
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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