Livraria da Folha

 
28/01/2010 - 21h07

Carrière retrata Hulot sem méritos, mas com carisma; leia trecho

da Folha Online

Divulgação
Menino de oito anos está dividido entre as regras dos pais e as do tio
Menino de oito anos está dividido entre as regras dos pais e as do tio

Jean-Claude Carrière consegue transferir o universo criativo do filme "Meu Tio" (1958), do cineasta francês Jacques Tati, para as páginas do romance homônimo, que será lançado pela Cosac Naify no próximo mês.

Carrière conta, em primeira pessoa, a história de um garoto de oito anos, chamado Gerárd. O menino vive dividido entre as regras impostas por seus pais --deslumbrados pelas facilidades que a vida moderna proporciona-- e a liberdade oferecida por seu tio, Hulot.

O parente não se adapta a esse "mundo novo", e acaba por preservar as relações afetivas estabelecidas entre as pessoas e o meio no qual vivem.

A editora Cosac Naify cedeu os direitos de reprodução do trecho abaixo à Livraria da Folha. O texto introduz o capítulo 6 do livro "Meu Tio". Nele, percebemos o deslumbramento de Gerárd diante do carisma e do "sabor secreto nas coisas" que seu tio possuía.

*

Quando nós dois saíamos a passeio eu me espantava o tempo inteiro com o comportamento do meu tio, o desapego que ele tinha com as coisas mais sérias, ou que parecem assim, e a atenção que às vezes ele dedicava a um tijolo caído de um muro em ruínas; um tijolo desgastado pelas águas e pelo tempo.

Meu tio o apanhava e recolocava suavemente no pedaço de muro desmoronado. Quando eu perguntava:

- Por que você está fazendo isso?

Ele não respondia, levantava os ombros e saía.

Algumas pessoas achavam ele meio bobo. Eu percebia. Adivinhava que para o meu pai, por exemplo, com todo o respeito que ele devia à família da minha mãe, o tio Hulot não passava de um indivíduo sem méritos e sem futuro, que era preciso sustentar e empurrar para a frente.

Pois é. Era exatamente essa a opinião do meu pai.

Às vezes eu me pergunto se ele não tinha razão. Acho que não.

Quando chegava na pracinha onde cada qual conhecia meu tio fazia um tempão, eu percebia que as pessoas o consideravam como um deles. O senhor Hulot? É aquele menino velho que mora lá no alto, sabe? Um grandalhão, que fuma cachimbo. É, ele é solteiro, talvez meio estrambótico, meio distraído... Mas ele não morava pertinho das nuvens?

As pessoas o cumprimentavam sem zombaria, pediam e prestavam serviços a ele. Deixavam o meu tio viver do jeito dele, ao saber de cada dia e cada noite, sem tentar espiar por cima dos ombros o que é que ele fazia. Convidavam ele para tomar trago no barzinho do bairro, onde as mesas na calçada cheia de sol eram uma tentação. A zeladora do prédio passava as camisas dele. Em troca, ele comprava frutas para ela, dava umas palmadinhas nas bochechas da filhinha dela e achava ela bonita. Uma garotinha que ele conhecia desde pequenininha...

Eu acompanhava os passos do meu tio com um desejo que a cada vez era diferente e a cada vez era satisfeito, com uma confiança absoluta. Nada poderia me atingir ou me ferir. Tudo podia me distrair ou me fascinar. Passo a passo, olhar atrás de olhar, eu descobria um sabor secreto nas coisas.

 
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