Livraria da Folha

 
06/03/2010 - 10h44

Garoto precisa evitar duelo mortal entre idosos em obra juvenil de David Grossman

da Livraria da Folha

Já adulto, David resolve contar uma situação arriscada em que se envolveu quando tinha apenas 12 anos e vivia em Jerusalém, neste romance de David Grossman para o público juvenil.

Divulgação
Menino precisa encontrar quadro roubado antes do confronto
Menino precisa encontrar quadro roubado antes do confronto

Em "Duelo" o melhor amigo de David é Heinrich Rosenthal, um senhor de setenta anos, que conheceu num asilo de idosos. Um dia, o senhor Rosenthal recebe uma carta de um velho rival, que o acusa de ter roubado uma inestimável pintura. Para tornar a situação ainda mais complicada, o acusador não aceita nada menos que um duelo - dos verdadeiros, com pistola - para o acerto de contas.

Mesmo não tendo roubado a pintura, o senhor Rosenthal sente que deve respeitar o código de honra de sua juventude e enfrentar o duelo. Disposto a impedir o confronto, o menino precisa descobrir quem roubou o quadro e por quê; para isso, deve juntar as peças de uma história de amor iniciada muitos anos antes.

O livro tem ainda imagens feitas pelo ilustrador chileno Gonzalo Cárcamo, vencedor de prêmios como HQMix e Prêmio FNLIJ.

Leia o capítulo inicial de "Duelo".

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DUELO

Debaixo da cama

Éramos três: Rámi, o mais forte da classe; Amnon, que era valente como um piloto japonês e sabia mexer as orelhas; e eu.

Não. Não é isso.

Éramos sete. Sete jovens destemidos. Investigadores brilhantes, olhares ultra-aguçados. Tínhamos até um cachorro, claro (não poderia ser diferente); um cachorro grande e esperto, que quando necessário sabia disparar uma arma e mentir sem ficar vermelho. Sim, com ele éramos invencíveis, éramos in...

Não.

Não éramos três nem sete, e quanto ao cachorro, sem comentários. Era só eu. Sozinho. Talvez se houvesse outra pessoa eu teria me sentido mais seguro ali, embaixo da cama, no lar de idosos no bairro de Beit Hakerem, esperando o terrível valentão da faculdade de medicina de Heidelberg, cidade que fica na Alemanha. Talvez se houvesse mais alguém... Não peço muita coisa, só alguém que saiba o que fazer em situações de perigo, que tenha alguma prática em investigação e, de preferência, que também possua uma arma; e talvez uma lupa, para depois descobrir impressões digitais no cadáver... mas, sinceramente, eu estava com muito medo de que o corpo fosse o meu e, como tenho uma ligação emocional muito forte com este corpo, não me permiti continuar pensando nessas coisas tristes, e fixei o olhar no feixe de luz que surgiu no vão embaixo da porta.

Pois, como já disse, eu estava deitado embaixo da cama. Além do pedaço inferior da porta, podia ver o tapete colorido e uma velha mala cinza, atada com duas tiras de pano, e as pernas finas do senhor Rosenthal, com os pés calçando seus bons e velhos tênis de corrida.

Mas é melhor eu me explicar primeiro. Afinal, não se pode começar uma história embaixo da cama. Não é um começo muito digno e, além disso, lá também há poeira demais.

Eu tinha doze anos quando aconteceram essas coisas. Agora tenho vinte e oito, e até hoje me lembro das batidas do meu coração quando ouvi os passos do valentão da faculdade de medicina de Heidelberg. Eu já disse que estava sozinho, quer dizer, sozinho embaixo da cama. Em cima da cama estava sentado o senhor Rosenthal, Heinrich Rosenthal, setenta anos, baixinho, de vasta cabeleira branca; mas embaixo da cama, só eu, absolutamente sozinho. E me lembro que naqueles momentos de solidão e expectativa cheguei a pensar: talvez a minha mãe tenha razão. Talvez não seja bom eu não ter amigos e ficar sempre sozinho, ou ter um monte de amigos esquisitos como o senhor Rosenthal. Meus pais estavam um pouco preocupados com isso, de eu não ser escoteiro, nem participar do movimento juvenil e quase nunca frequentar as festinhas de fim de semana da minha classe. Eu, do meu lado, só me preocupava com a preocupação deles, pois conseguia me entender muito bem comigo mesmo. E o pessoal da minha classe também já tinha quase parado de me forçar a tomar parte das atividades, talvez porque tenha ficado de saco cheio, ou porque não desse a mínima se eu fosse ou não.

Como já disse, eu sabia lidar direitinho com essa situação; mas quando o meu pai entrava de noite no quarto, sentava ao meu lado na cama, me olhava sem dizer nada, era difícil de aguentar; até mais difícil do que as brigas barulhentas com minha mãe, que vivia gritando comigo e dizendo que eu às vezes me comportava como um velho, não como um garoto de doze anos. Mas a minha mãe não conhecia o senhor Rosenthal. Apesar de na carteira de identidade estar escrito que ele tinha nascido em 1896, ele era ágil e vigoroso como um rapaz de vinte anos, e dizia que a vida de verdade só começa aos setenta.

Conheci o senhor Rosenthal no começo do ano letivo. A nossa orientadora nos dividiu em grupos de "voluntários", e entre as atividades que sugeriu havia a opção de ajudar e fazer amizade com alguma pessoa idosa.

Quando a minha mãe ouviu que eu, entre toda a enorme quantidade de opções, tinha escolhido justamente "adotar" um idoso e lhe fazer companhia duas vezes por semana, apenas disse: "Era de se esperar!". E vocês, que ainda não conhecem a minha mãe, precisam saber que isso é na realidade uma abreviação para: "Era de se esperar! Em vez de procurar amigos da idade dele, em vez de jogar futebol e fazer esporte, em vez de largar um pouco os livros e aquele coelho irritante, em vez de tudo isso ele vai e acha um amigo de setenta anos; e eu tenho certeza de que é só para me deixar nervosa". Esse é o significado inteiro, sem abreviações nem resumos, da frase "Era de se esperar!" da minha mãe; e fiquem sabendo que é muito mais econômico dizer "Era de se esperar!" em vez de fazer o discurso inteiro. Mas não adiantou nada, e eu me inscrevi num grupo com mais três garotos para visitar o asilo dos velhos, também chamado de "Lar de Idosos", que ficava no bairro de Beit Hakerem em Jerusalém.

Eu quero dizer uma coisa.

Sei que existem meninos que não gostam de gente velha; que dizem que os velhos às vezes têm cheiro ruim e cara cheia de rugas ou que irritam a gente porque são muito lerdos para fazer as coisas. Só vou dizer uma coisa sobre isso: existem muitos velhos largados e desleixados, mas é só porque foram largados pelas outras pessoas. Eles não têm ninguém que os ame ou cuide deles. E isso é muito simples, é como uma regra básica de gramática: se você larga uma pessoa, ela fica largada. E pronto. Não fui eu que inventei essas coisas. Ouvi isso várias vezes dos velhos no asilo, sentado conversando com eles enquanto esperava o senhor Rosenthal. Muitos deles tinham famílias e amigos e colegas de trabalho, mas no instante em que entraram no asilo, parece que todo mundo esqueceu deles. Havia uns velhos que não recebiam mais visita nem dos filhos. Eu tenho muito a dizer sobre esse assunto, mas não agora.

Pois agora já é possível ouvir claramente os passos pesados ao lado da porta do senhor Rosenthal, e esses passos se misturam com a pulsação nas minhas veias. Do meu ponto de observação privilegiado eu podia ver as canelas finas do senhor Rosenthal tremendo dentro das calças, e sabia que ele também estava com medo, apesar de já ter me dito e frisado umas sete vezes só naquele dia que na verdade era uma raiva terrível e incontrolável que o fazia tremer assim. Mas ele também me contou, mais ou menos umas dezessete vezes, que o valentão da faculdade de medicina calçava sapatos tamanho quarenta e sete; e que foi campeão de tiro ao alvo da Universidade de Heidelberg; e que levantava com uma mão só todos os doze volumes da Enciclopédia Alemã de Medicina; e que uma vez quebrou os dentes de cinco estudantes alemães que fizeram comentários ofensivos sobre os judeus.

Naquele dia o senhor Rosenthal me contou mais algumas histórias arrepiantes desse tipo, e no final de cada uma ele ficava ofegante, o rosto muito vermelho debaixo da cabeleira branca. Então batia com o punho fechado na palma da outra mão e dizia com um sotaque pesado de judeu alemão: "Mas ele que se atreva a vir aqui, eu lhe dou uma lição para ele ver como é bom xingar e fazer ameaças! Ele me chama de ladrão, aquele bárbaro desgraçado, aquele selvagem! Ele que venha! Eu arranco toda a coragem dele pela boca!". E era um tanto estranho ouvir isso, porque o senhor Rosenthal era baixinho e magro como um menino; e apesar de estar em muito boa forma, de nadar todo dia na piscina da universidade, de zombar de mim dizendo que o único esporte que eu fazia era piscar os olhos toda vez que virava a página de um livro, apesar de tudo isso eu tinha um pressentimento muito sombrio, de que no caso de uma briga entre o "meu" velho e o valentão-levantador-de-enciclopédias-estilo-livre, o senhor Rosenthal não teria a menor chance. Quando delicadamente insinuei isso, ele deu uma risadinha nervosa e me disse em tom de gozação que, se eu estava com medo, podia ir embora ou esperar no corredor até a terrível briga acabar, para então ajudá-lo a arrastar para fora o valentão amarrotado ou o que sobrasse dele. Ele falou comigo num tom de zombaria tão amargo que entendi o quanto ele estava com medo; então declarei, de forma irreversível, que ficaria junto dele, não importando o que acontecesse.

Ele se aproximou e apertou a minha mão sem dizer uma só palavra. Vi como os lábios dele estavam comprimidos, e isso era sinal de que estava comovido. Aí houve um desses momentos de silêncio, quando o aperto de mão faz brotar coragem, amizade e determinação. Mas, quando soltamos as mãos, o medo me atacou de novo, e vi que os ombros do senhor Rosenthal também estavam um pouco caídos. Ele começou a dizer que eu não devia, de maneira nenhuma, me meter com um homem daqueles, e que ninguém podia saber como as coisas iriam terminar, sobretudo quando se tratava de uma verdadeira besta como Rudy Schwartz, e que realmente seria melhor eu ir para casa. Eu disse a ele que não havia o que discutir, que eu ficaria e pronto. Pois a julgar pela descrição do Schwartz, e pelas conclusões que podiam ser tiradas da carta estranha e ameaçadora que ele enviara, seria uma traição sem tamanho se eu deixasse o senhor Rosenthal sozinho. Não que eu fosse especialmente forte, muito pelo contrário; mas assim pelo menos seríamos dois contra um, e poderíamos também duplicar a possibilidade de um dos dois ficar vivo para contar a história do embate para as gerações futuras ou, na verdade, para as gerações passadas, quer dizer, para a minha mãe e o meu pai.

E assim chegamos juntos à mesma proposta sagaz: eu me esconderia debaixo da cama até que ficassem claras as intenções do valentão de Heidelberg, e então sairia do meu esconderijo para acabar com o desgraçado, ou ao menos dar-lhe um pontapé na canela.

Eu digo "até que ficassem claras suas intenções", mas as intenções do valentão eram muito claras, e estavam listadas de forma extremamente detalhada na carta que o senhor Rosenthal havia recebido naquela manhã.

Nesse momento a carta estava sobre a mesa, e nela estava escrito: Ladrão miserável e sem-vergonha! Se até às sete da noite você não me devolver a boca dela, vou tomá-la à força, custe o que custar. E abaixo, um pouco ao lado, estava escrito em tinta vermelha o que despertou em mim ideias estranhas: Honra ou Morte, e a assinatura: Rudy Schwartz.

 
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