Pensata

Hélio Schwartsman

20/03/2008

A queda

Política, hipocrisia, sexo e poder. Num sentido mais amplo, todas essas palavras são sinônimas. Que o diga Eliot Spitzer, o ex-governador de Nova York que foi obrigado a renunciar depois de ter sido flagrado metido com uma rede de prostituição de luxo.

Há duas interpretações para a queda de Spitzer. Na primeira, ele sucumbiu porque os americanos são um povo puritano, que se compraz em punir seus líderes apanhados em "flagrante delicto" de humanidade. Pela segunda, seu pecado foi ter-se revelado um tartufo: praticava secretamente aquilo que em público condenava. O detalhe aqui é que as duas leituras não se excluem, pelo contrário, reforçam-se. Analisemo-as mais detidamente.

Se há algo a que os americanos não resistem é um escândalo sexual. O primeiro político dos EUA e meter-se com um foi Alexander Hamilton (1755 ou 1757-1804), que, em 1791, depois de uma denúncia, viu-se compelido a assumir seu relacionamento com Maria Reynolds. Ambos eram casados --e não um com o outro, é bom deixar claro. Embora insistisse em não ter violado nenhuma regra do trato com as coisas públicas, Hamilton sofreu um abalo fatal em sua carreira. Pouco depois teve de renunciar ao posto de secretário do Tesouro. Em vida, jamais voltou a gozar do prestígio que antes tivera, mas --e aí vem a primeira ambigüidade-- o pecadilho não o impediu de assumir um lugar histórico como "founding father" (pai fundador) da República norte-americana.

Hamilton não foi decididamente um caso isolado. O site politicker.com mantém uma lista dos 53 maiores escândalos sexuais dos EUA. Bill Clinton, é claro, ocupa a posição número um, após o rumoroso "affair" com Monica Lewinsky que quase lhe custou a Presidência, sem mencionar, é claro, Gennifer Flowers e Paula Jones, suas supostas amantes dos tempos de governador do Arkansas. Mas o rol é bem mais amplo e atinge representantes de vários Estados e de todos os partidos em todas as épocas. Envolve casos heterossexuais, homossexuais, com prostitutas, mulheres casadas e menores. Há até um homicídio.

Boa parte desses escândalos seria "dispensável" em outros países ocidentais, que separam melhor (ou pelo menos com mais clareza) a esfera pública da privada. Em várias nações, incluindo o Brasil, onde o político instala seu anexo é normalmente um assunto que só diz respeito a ele e às pessoas diretamente envolvidas. A questão só ganha dimensão pública se uma das partes se queixa do comportamento do "dito cujo" (o político, não o anexo) ou denuncia uma falta correlata. Caso contrário, administradores costumam ser deixados em paz com seus/suas amantes até pela imprensa.

Os americanos, entretanto, não apenas se obstinam em escrutar a vida privada de seus homens e mulheres públicos como ainda cultivam o que é provavelmente a mais absurda legislação sexual do Ocidente. Comecemos pela prostituição, pivô da desgraça de Spitzer. Como já mostrei numa coluna antiga, ela é proibida em 48 dos 50 Estados e no Distrito de Columbia (Washington). As exceções são a diminuta Rhode Island e alguns condados de Nevada. As penas podem chegar a dois anos de cadeia para o usuário (Iowa) e cinco anos para a prostituta (Pensilvânia, em caso de reincidência). O proxenetismo pode custar 20 anos de xadrez (Idaho).

A título de comparação, no Brasil, solicitar serviços de prostituição ou fornecê-los não é crime. O proxenetismo é. Dá até cinco anos. Mas há nações mais civilizadas como Holanda, Alemanha, Suíça e Nova Zelândia, em que a atividade é perfeitamente legal e está regulamentada. Michês de ambos os sexos e seus intermediários pagam taxas e impostos, têm direito aos benefícios sociais oferecidos a todos os trabalhadores e podem anunciar livremente seus serviços.

E os americanos não param na prostituição. Até 1962, o sexo anal e oral era considerado pelas "sodomy laws" crime em todos os Estados americanos. Em Idaho, uma aventura dessas custava de cinco anos a prisão perpétua --não, você não leu errado: prisão perpétua por usar buracos diversos dos que se supõe ser os projetados pelo Criador para aquele fim. É claro que as legislaturas mais razoáveis foram derrubando ou abrandando essas leis, mas um bom punhado ainda as mantinha até 2003, quando uma decisão da Suprema Corte (Lawrence v. Texas) as tornou inconstitucionais.

Como sempre convém ao direito, entretanto, ainda resta uma polêmica. Não está claro se a decisão da Suprema Corte abarca apenas leis que discriminam homossexuais, como era o caso do Texas, ou se afeta todas elas. Nessa hipótese, normas que criminalizam a sodomia também entre casais do sexo oposto podem estar ainda em vigor. Se for assim, muito cuidado com o que fizer num motel de beira de rodovia em Idaho. A perpétua pode ainda estar valendo, inclusive se os "criminosos" forem casados um com o outro.

Deixemos, porém, de lado as excentricidades legislativas dos norte-americanos. Desconfio que tamanho desejo de controlar faça parte da herança protestante. A "virtude" é uma predestinação diretamente inspirada por Deus, que se manifesta num comportamento moral e até em sinais externos como a prosperidade material. Assim, bisbilhotar a vida alheia em busca de sinais de fraqueza nada mais é do que ler no "livro do mundo" os signos da vontade divina (Sei que essa é uma leitura teologicamente tacanha, mas não creio que os legisladores estaduais americanos vão muito além disso).

Só que Spitzer não era governador de Idaho, mas de Nova York, um Estado algo mais cosmopolita. Acredito que boa parte dos nova-iorquinos deve é irritar-se quando vê o suado dinheiro dos impostos que paga ser usado para investigar e punir simples freqüentadores de prostíbulos. Mesmo assim, Spitzer não encontrou a menor condição política de permanecer no cargo.

A razão aqui é biográfica. O governador, que antes ocupara o cargo de "attorney general" (uma espécie de procurador-geral diretamente eleito pela população) fizera toda a sua carreira construindo para si a imagem de homem incorruptível e perseguidor implacável dos figurões de Wall Street que violavam a lei e cometiam todo gênero de desvios éticos. Chegou ele próprio a processar redes de prostituição. Era figura ascendente do Partido Democrata.

Maior a altura, maior o tombo. Há níveis de hipocrisia que nem o mais tolerante dos liberais nova-iorquinos consegue engolir. Spitzer certamente os ultrapassou ao usar repetida e premeditadamente os serviços de escort do Emperors Club VIP. Para não correr o risco de ser acusado de hipócrita, o novo chefe do Executivo de Nova York, David Paterson, já anunciou para todos que teve amantes. Não só ele como sua mulher.

Não há dúvida de que a impostura do ex-governador é politicamente punível. Também é possível que ele tenha violado princípios da administração pública. Será esse o caso se, no curso das investigações, se comprovar que ele pagou a prostituta com dinheiro público ou com fundos de campanha. Só que a merecida queda de Spitzer não deve servir para justificar que se esmaeçam ainda mais as fronteiras entre o público e o privado, o que parece ser uma tendência em tempos de internet e na esteira do sucesso de audiência das mais variadas modalidades de "reality show".

Desde que o mundo é mundo, políticos se tornam políticos também para comer mais mulheres, e as pessoas a eles se submetem para depois comentar suas vidas e, principalmente, seus deslizes. Ainda assim, é preciso manter o espaço da intimidade e da privacidade, inclusive para políticos. O que dois adultos fazem consensualmente entre quatro paredes não é assunto em que legisladores possam, sem ser convidados, imiscuir-se. Mais do que uma licença orgiástica, essa esfera de inviolabilidade é necessária ao Estado democrático. É só nela que somos livres para fazer o que bem entendermos sem ter de prestar contas às autoridades de Idaho ou quaisquer outras que se sintam no direito de definir o certo e o errado.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca