Pensata

Hélio Schwartsman

15/05/2008

Descascando o abacaxi

"Mea culpa, mea maxima absolutissimaque culpa!" Achei que minha observação acerca da carga fiscal que deve incidir sobre drogas, feita na coluna da semana passada, passaria mais ou menos incólume em meio à argumentação, mas eis que um número bastante significativo de leitores escreveu-me para questionar a noção de que é possível, através de impostos, ressarcir o sistema público de saúde pelo aumento de custos decorrente de uma eventual legalização da maconha, cocaína, heroína etc. Tinha evitado detalhar essa proposta e meti acintosas e ostensivas aspas na expressão "fechar" a conta do SUS" porque a economia não está entre minhas pseudociências favoritas, mas, já que os leitores exigem, descasquemos o abacaxi.

As objeções podem ser divididas em duas famílias. Houve aqueles que concordaram com minha tese central de que não cabe ao Estado legislar sobre os venenos que cada um enfia conscientemente dentro de seu próprio corpo, mas temem que a elevação dos tributos necessária para financiar a saúde pública acabaria incentivando o contrabando. Trocando em miúdos, para pagar a conta do provável aumento de dependentes, os impostos teriam de subir tanto que o estímulo econômico ao mercado negro permaneceria. Ou seja, a legalização não bastaria ara acabar com o narcotráfico, tornando-a contraproducente ou, na melhor das hipóteses, inútil.

Um outro grupo de missivistas foi mais longe e criticou a idéia de que não é função do poder público definir o que cada um pode ou não fazer consigo mesmo. Para eles, uma vez que o consumo de entorpecentes gera ônus que recaem sobre o conjunto da sociedade, o Estado está autorizado a banir certos comportamentos à primeira análise privados.

São bons argumentos. Vamos a eles.

Longe de mim querer rechaçar a lei da oferta e da procura e suas derivações. Se o preço de um produto é muito alto por conta dos impostos que incidem sobre ele, maior é o prêmio pago àqueles que burlam o sistema e conseguem, evadindo-se das taxas, oferecer a mercadoria a custo inferior. É este o "segredo" do uísque paraguaio. É também daí que vem o "lucro" do narcotraficante. Em princípio, uma trouxinha de maconha não precisaria custar mais do que um pé de alface e não haveria razão para cobrar por algumas carreiras de cocaína mais do que por um blíster de aspirina. Os entorpecentes, entretanto, têm seu preço cotado a ouro porque quem os vende exige uma alta remuneração pelos riscos que corre. O narcotráfico, afinal, pode render até 15 anos de cadeia.

O meu ponto é relativamente simples: dado que a natureza curiosa do homem aliada aos mecanismos fisiológicos da dependência nos garantem que sempre existirão consumidores dispostos a sancionar o sobrepreço incidente sobre as drogas, é melhor que o Estado e não agentes privados se apropriem dessa mais-valia tóxica, pois, no final das contas, será o poder público e não o narcotraficante que terá de amparar o dependente por meio da seguridade social --tratamento médico ou pensão para a viúva. Já nas mãos do traficante, o dinheiro excedente costuma ser usado para corromper autoridades e financiar outras atividades criminosas. Uma parte --é preciso admiti-lo-- se converte em renda nos morros e favelas: é a remuneração paga aos pequenos distribuidores, olheiros etc.

A questão passa então a ser definir uma carga tributária ótima, que, sem tornar o mercado negro maior que o oficial, restitua aos cofres públicos a maior porção possível dos gastos em que incorrerão com usuários de drogas. E isso, acredito, se faz por tentativa e erro. Não existem fórmulas capazes de estabelecer "a priori" a alíquota ideal.

De toda maneira, acho que combater o contrabando de produtos fabricados em linhas industriais é uma tarefa mais factível do que eliminar narcotraficantes que produzem suas mercadorias no meio da selva ou em laboratórios de fundo de quintal. Além da polícia, o Estado disporia de ferramentas fiscais. Se cigarros exportados sem taxas estão voltando para o país pela via do mercado negro, é só elevar o imposto de exportação de modo a equalizar os preços. Aliás, nunca entendi a moralidade dos incentivos fiscais à exportação de tabaco e álcool. Não me parece muito bonito estimular nossos empresários a envenenar povos estrangeiros.

Como eu disse na coluna anterior, aqui não existem "soluções". Tudo o que podemos fazer é escolher o problema com o qual conviver: narcotráfico ou mais casos de dependência. Prefiro o segundo. A decisão sobre usar ou não drogas é, pelo menos nas primeiras vezes, uma escolha do indivíduo. Já a violência gerada pelos traficantes freqüentemente atinge pessoas que em nenhum momento optaram por correr certos riscos. No mais, não advogo pela legalização súbita amanhã, mas sim por um processo de mudança de paradigma. Precisamos retirar a ênfase do combate ao narcotráfico ao mesmo tempo em que capacitamos a rede de saúde pública e tentamos educar os jovens para os riscos do uso de drogas. É mais fácil fazê-lo sem falsos moralismos ou ameaças de prisão.

Passemos agora à segunda objeção, a de que cabe, sim, ao Estado inibir comportamentos que implicam custos adicionais à sociedade.

É preciso aqui em primeiro lugar refletir o que se entende por "adicionais". "There is no free lunch" (não há almoço grátis). Praticamente tudo o que fazemos implica custos para nós e para terceiros. Se eu como demais, fico obeso e, assim, tendo a desenvolver doenças que onerarão os co-partícipes de meu plano de saúde e o Estado, que, na eventualidade de minha morte precoce, terá arcar com mais anos de pensão para minha mulher e filhos menores. E as coisas podem ser ainda mais sutis: algumas pesquisas recentes sugerem que, se eu não exercitar meu cérebro, aumento minhas chances de padecer do mal de Alzheimer, moléstia com impacto devastador para a família e altos custos de internamento. De modo análogo, mulheres nulíparas (que não têm filhos) apresentam risco maior para determinados tipos de câncer de mama, e pessoas que não comem fibras ampliam as chances de tumores no aparelho digestivo.

Deveríamos então, por uma questão de justiça tributária, obrigar todos os cidadãos a manter-se dentro de faixas de peso saudáveis e todas as mulheres a engravidar pelo menos uma vez? Ou, para sermos fiéis aos princípios contábil-liberais, deveríamos autorizar o consumo de drogas apenas para pessoas solteiras, sem filhos e que paguem em "cash" por suas consultas e tratamento médico? Nesse caso, vale reparar, o óbito precoce tende a ser benéfico para o Estado, que ficará dispensado de pagar uma aposentadoria. Se formos rigorosos, deveríamos também providenciar um imposto especial para corredores que procuram uma vida saudável correndo em parques. Embora eles estejam reduzindo seu risco de moléstias cardiovasculares, aumentam exponencialmente as possibilidades de ser fulminados por um raio.

Não creio que seja possível nem desejável chegar a tais minúcias de controle sobre a vida das pessoas. Basicamente, cada um de nós precisa ficar doente de vez em quando e morrer de alguma coisa. Olhando de perto e "a posteriori", sempre poderemos correlacionar a moléstia e o óbito a alguma escolha ou hábito do cadáver ou moribundo. Assim, deve valer aqui o mesmo princípio que rege os seguros: pago o prêmio (impostos, INSS), o usuário tem direito a indenização independentemente de ter ou não culpa pelo sinistro. É uma regra meio "socialista", mas acho que é assim que deve ser, ou abriremos flanco para discussões intermináveis acerca da própria noção de causalidade.

Em minha modesta opinião, o que de melhor podemos fazer é deixar que cada um faça consigo mesmo o que bem entender, apenas banindo um determinado número de comportamentos insofismavelmente anti-sociais, como dirigir sob a influência de drogas ou pilotar aviões sem habilitação técnica.

Fora dessas regras mínimas de convivência social, todas as tentativas de regular hábitos e costumes individuais devem ser denunciadas como fascismo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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