Pensata

Hélio Schwartsman

29/04/2010

Freud no divã

O sempre polêmico filósofo francês Michel Onfray aprontou mais uma. Acaba de lançar o livro "Le Crepuscule d'une Idole - L'Affabulation Freudienne" (O Crepúsculo de um Ídolo - A Fabulação Freudiana), no qual desfere fortes ataques à vida e à obra de Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise. Mesmo antes da chegada do catatau de 624 páginas às livrarias, no último dia 21, a França vivia clima de guerra intelectual, com a comunidade psicanalítica (principalmente freudianos e lacanianos) se mobilizando para responder à ofensiva.

O objetivo de Onfray em "Le Crepuscule", cujo título já escancara sua inspiração nietzschiana, é demonstrar que "a psicanálise funciona como uma metafísica de substituição num mundo sem metafísica e oferece elementos para a construção de uma religião numa época do pós-religioso". Segundo o filósofo, as instituições da psicanálise foram construídas por seus "sacerdotes" num esquema próximo ao da religião cristã, com seus patriarcas trabalhando diligentemente para esconder o que poderia vir a macular o mito --daí a própria razão de ser do livro, que é desconstruir as falsificações.

Confesso que tenho simpatias por Onfray. Não tanto pela qualidade de sua obra, da qual li pequena fração, mas pela capacidade de colocar o dedo nas feridas intelectuais francesas e torcê-las sem dó. Neste caso, porém, só lhe dou meia razão.

É claro que a psicanálise não é nem nunca foi uma ciência. E quem frequentar um psicanalista em busca de cura para doenças mentais não apenas joga dinheiro fora como ainda pode estar retardando intervenções médicas necessárias. Parece-me entretanto historicamente falso, além de injusto, negar a Freud um lugar no panteão dos pioneiros. Afinal, ele foi o primeiro a identificar o inconsciente e ressaltar sua importância nos processos mentais humanos --o que não é pouca coisa. Receio, porém, que já esteja me antecipando. Voltemos às críticas de Onfray. Depois retomo a apreciação do que, a meu ver, sobrevive de Freud.

Pela reportagem que o caderno Mais! (só para assinantes do UOL e da Folha) publicou no último domingo, "Le Crepuscule" não tem muito de inédito. Ele como que retoma, agora sob coreografia do polêmico filósofo, objeções epistemológicas e argumentos "ad hominem" que já haviam sido publicados em 2005 em "Le Livre Noir de la Psychanalyse" (O Livro Negro da Psicanálise), obra coletiva que reúne 40 artigos contra Freud.

E o próprio "Livre Noir" não é exatamente uma novidade. Ele é uma tradução para o francês dos humores antipsicanalíticos que emanam do mundo acadêmico norte-americano, onde a visão preponderante é a de que Freud nunca passou de um charlatão.

Isso foi algo que me chamou a atenção durante o ano sabático de 2008-2009 que passei na Universidade de Michigan. Ali ninguém fala de Freud, que praticamente não consta dos programas de psicologia, seja de graduação ou de pós, de nenhuma das grandes universidades que consultei. (Além de Michigan, dei uma olhadinha em Stanford e Yale, que têm os dois mais conceituados departamentos de psicologia dos EUA). Com um pouco de sorte, o nome do pensador vienense talvez seja mencionado --e bem "en passant"-- em algum curso introdutório. O resto é basicamente neurociência, ciência cognitiva, psicolinguística, um pouquinho de nada de sociologia e, na parte clínica, terapias não psicanalíticas.

O contraste com o Brasil é gritante. Aqui, a julgar pelo programa da PUC-SP, Freud e sucessores, como Jung e Melanie Klein, ainda compõem algo como um terço do currículo. Não creio que a situação seja muito diferente nas outras instituições.

O ocaso de Freud nos EUA (e em outros países que prestam mais atenção à ciência do que à metafísica) teve início nos anos 50, com o desenvolvimento dos primeiros fármacos psicoativos. A constatação de que drogas eram capazes de provocar alterações no psiquismo abriu toda uma nova avenida para pesquisas. Os antipsicóticos nos fizeram compreender melhor o sistema dopaminérgico. Depois vieram os antidepressivos e, com eles, foram destrinchados os sistemas da serotonina e das monoaminas. Ressonâncias magnéticas funcionais e tomografias por emissão de pósitrons completaram o arsenal do qual hoje a neurociência se vale para esquadrinhar o cérebro. Paixões, pensamentos e até o raciocínio lógico deixam cada vez mais de ser abstrações para tornar-se manifestações físicas no neurônios. É o triunfo do monismo.

Os avanços nesse campo foram tão rápidos e surpreendentes que há autores como George Lakoff afirmando que até mesmo as metáforas que utilizamos na linguagem têm existência material em nossas células nervosas. Diante de tão palpáveis evidências, fica mesmo difícil recorrer a conceitos algo nebulosos como complexo de Édipo, recalque, pulsão de morte e cura pela palavra.

Paradoxalmente, o próprio Freud, que jamais renunciou à pretensão de fazer ciência, teria aplaudido o avanço da psicofarmacologia. Em seu último livro, o inacabado "Esboço de Psicanálise", de 1938, ele escreveu: "O futuro provavelmente vai nos ensinar a influenciar diretamente as quantidades (psíquicas) de energia e sua distribuição no aparelho psíquico por meio de matérias químicas especiais. Talvez surjam ainda outras possibilidades ainda desconhecidas de terapia; por enquanto nós ainda não temos nada melhor que a técnica psicanalítica à nossa disposição e por isso ela não deve ser desprezada, apesar de suas limitações".

Aparentemente, esse futuro chegou --em que pese a forma ainda grosseira com que atuam os psicofármacos.

Do modo que foi formulada, a psicanálise jamais passou perto de ser uma ciência. Faltam-lhe metodologia, resultados e conteúdo empírico para reclamar estatuto epistemológico. E acho complicado até tentar reservar para ela o papel de saber curativo. Pelo menos para mim, é especialmente chocante a ideia de que o principal que havia a ser dito sobre o psiquismo humano foi dito por Freud mais de 70 anos atrás e, de lá para cá, nada de muito relevante surgiu. Se é verdade que as ciências duras, em especial as biológicas, padecem do defeito de olhar muito pouco para seu próprio passado --médicos raramente leem um texto com mais de cinco anos--, a psicanálise tem a falha de ser imune ao presente. A verdade já foi revelada pelo profeta vienense, não havendo mais nada (ou quase nada) a acrescentar.

E essa é uma característica que, na minha opinião, dá razão a Onfray quando afirma que a psicanálise se estruturou de forma semelhante às religiões --ou partidos políticos de esquerda, ouso acrescentar. Para prová-lo, basta conferir o elevado número de defecções, rompimentos e até excomunhões entre seus membros.

É claro que, numa sociedade livre, cada um pode ir atrás do que lhe faz bem. Se o fiel encontra conforto na missa, é perfeitamente legítimo que o neurótico busque alívio no divã. Dada, entretanto, a ausência de evidências científicas de que essas terapias funcionam para além do efeito placebo, relutaria bastante antes de introduzi-la na rede pública de atendimento.

Só que nem a precariedade epistemológica da psicanálise nem as várias picuinhas levantadas por Onfray, como as supostas infidelidades conjugais de Freud ou suas propaladas simpatias pelo fascismo, são suficientes para tirar do vienense o grande mérito de ter "inventado" o inconsciente. Os avanços da neurociência vão mostrando que esse conceito é ainda mais importante do que suspeitava o pai da psicanálise. Experimentos nesse campo já colocam em dúvida até a existência do livre-arbítrio. Ter percebido isso num mundo ainda vitoriano é definitivamente uma façanha. Apenas isso já bastaria para colocar Freud no mesmo patamar de outros grandes pensadores que, munidos apenas da especulação, contribuíram para que a humanidade pudesse lançar um novo olhar sobre si mesma.

Freud é um clássico --e a psicanálise, seu maior erro.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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